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80
Eu nunca o tinha visto pelas ruas. E ele me surgiu, de repente, no inacreditável da visão que vê, mas não percebe a si mesma. Por isso, no começo, era como se eu nem visse. Primeiro, vi algo que se parecia com uma bicicleta. Tinha as rodas uma de cada lado, os canos no centro, o guidão à frente, as correntes, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada disso. As rodas da bicicleta também eram rodas de uma moto, com pneus grossos e outros adornos. O guidão era tão cheio de coisas penduradas por toda parte que mais parecia o comando de uma nave espacial indo direto dali para outro lugar. Uma espécie de ferramenta foi acoplada ao guidão para fazer as vezes de câmbio de troca de marcha. E os penduricalhos se espalhavam por todos os lados. Na parte de trás, uma caixa dessas de plástico dava vida a um depósito de muitas coisas que naquele momento eu ainda não podia saber o que eram. Meus olhos viam um formidável produto de engenharia que eu não conseguia classificar, nem distinguir, nem esquecer. Biciclomoto talvez. Seu hábil condutor era conhecido como 80. Isso mesmo. Seu nome era um número, ou seu número era um nome, como queiram. Ninguém nunca soube me explicar porque ele se chamava assim. 80 era tido como louco das ideias. Varrido, do tipo que ninguém dá muita atenção. Dele só se sabia que andava pelas ruas da cidade noite e dia, dia e noite. Conduzindo a sua biciclomoto, falando coisas que ninguém entendia, que ninguém ouvia, trombando nas esquinas, batendo nos muros, desafiando as sarjetas e todas as leis físicas do deslocamento. Nesse dia vi 80 enquanto estava parada no semáforo. Era meio-dia. Vi um homem vindo rápido em cima de algo como uma bicicleta. O sol ia alto e a luz se intercalava com os vãos deixados pela sua imagem. Só me chegava um vulto. Ele parou quando à sua frente se colocou o muro de uma casa vizinha. Olhou para os lados como quem não olha. Deu marcha ré, fez com os lábios o barulho do acelerador da moto, pude ouvir e ver o fazer-se do movimento. Arrumou alguns penduricalhos, conferiu o motor, o estado das rodas. Brigou com a calçada, tropeçou na sarjeta, insistiu com o espaço e, num instante fugitivo, caiu de um só tombo no chão. A biciclomoto também tombou perfeitamente encaixada no seu corpo e rolaram pela rua abaixo milhares de laranjas e limões que ele deveria ter recolhido das árvores que visitaram o seu caminho naquele dia. Tudo que ele tinha recolhido agora ia embora descendo aquela rua. 80 estava imóvel. Completamente. Parecia morto, mas poderia ser uma encenação, uma encenação de morte, afinal, não diziam que ele era louco. O semáforo abriu. O carro andou. 80 ficou para atrás. Os carros atrás do meu seguiram. Os que vinham também. Ninguém parou. Ninguém o viu deitado, entre a biciclomoto, iluminado pelo sol. Fiquei sabendo, nem me lembro mais como, que ele se levantara um tempo depois. Me disseram que era comum. Que ele sempre se jogava e se levantava depois. Ah! É louco! Me disseram que ele já estava de pé, arrumando a sua moto, vendo se nada estava fora do lugar, e recolhendo, uma a uma, todas as laranjas e os limões que haviam rolado rua abaixo.
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