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Posts Tagged ‘literatura russa’

A revista “Cult”, do presente mês de fevereiro, agradou-me profundamente devido a um dossiê sobre alguns dos mais importantes nomes da literatura russa, entre eles, Dostoiévski, Gógol, Tchekhov e Tolstói, levantando a seguinte questão: como se explica que no século 19, na Rússia – considerada bárbara pelo ocidente – tenha surgido uma leva de escritores que figuram entre os mais importantes da modernidade? O dossiê é extremamente interessante, completo, contextualizado e simplesmente imprescindível para aqueles que, de alguma forma, apreciam a literatura russa. Portanto, fica aqui a dica, vale a pena ler e resolver algumas dúvidas, embora, eu não descarte a possibilidade de que se crie outras. O dossiê fala de cada um dos autores citados anteriormente, analisando sua obra e revelando um pouco de sua personalidade, além de traçar um painel histórico literário da Rússia do século 19.
Gógol: tradição e modernidade

O primeiro dos escritores a ser analisado pelo dossiê é Gógol, álias como nos lembra a reportagem, 2009 é considerado pela UNESCO como o ano de Gógol, o que nos leva a conclusão de que muitas exposições e eventos acontecerão na Rússia neste ano para lembrar o bicentenário de seu nascimento. No dossiê, Gógol nos é apresentado como alguém de personalidade enigmática, o que facilmente deixava-se transparecer em algumas de suas obras como “Confissões de um autor” e “Trechos escolhidos de correspondências com amigos.” Muito ligado à mãe, sempre teve uma dificuldade em suas relações amorosas que o levaram a tratar o amor em sua obra de forma cômica, zombeteira, ou seja, o escárnio constituía uma espécie de máscara para a sua incapacidade de amar. Seus personagens são sempre incompletos, fragmentados, refletindo os aspectos “doentios” do autor que se deixou morrer de inanição. O fato é que ele nos deixou uma obra riquíssima, composta por títulos como “O capote”, “Almas Mortas”, “O nariz” e “O inspetor geral”, todas elas ricas em detalhes, revelando os mistérios do irracional, algumas vezes sob a máscara da racionalidade.

Dostoiévski: revolução na descrição da alma humana

Depois é a vez de Dostoiévski, aquele que tão bem investigou a alma humana em suas relações com a realidade mais profunda, penetrando na essência significativa dos fenômenos sociais. Ele acreditava que o verdadeiro artista era aquele que produzia “algo mais amplo e mais profundo” do que a “verdade fotográfica, a precisão mecânica” captada pelos “os olhos do corpo”, o essencial, segundo Dostoiévski, era olhar para o homem e a sociedade “com os olhos da alma”, dessa forma os seres humanos deveriam ser representados como seres plenamente sensíveis e não como estereótipos. Dostoiévski se interessava justamente por aquilo que escapava do campo de visão dos outros escritores, lhe atraíam mais o fatos extraordinários, excepcionais, para que através destes, ele revelasse as leis básicas da vida. É considerado por muitos estudiosos como um escritor realista, ele mesmo se considerava como tal, retratando todas as profundezas da alma humana, mas o fato é que ser apenas realista não sustenta a densidade de sua investigação do homem, a tal ponto que seu realismo é, acima de tudo, psicológico. Os fatos da realidade eram o centro de sua obra, uma obra que rejeitava a capacidade de explicação racional para os fenômenos da vida. A realidade objetiva, dominada, se por acaso existe em sua obra, passa totalmente despercebida. É nesta linha que Dostoiévski produz uma literatura que escapa dos limites de toda uma época, que não se contenta apenas com um maniqueísmo simplista, optando muito mais pelas zonas cinzentas que definem o indefinível. Entre seus romances destacam-se “Os Irmãos Karamázovi”, “Crime e Castigo”, “O idiota”, “O Adolescente”, dentre outros.

Tolstói: literatura e vida social

Na parte do dossiê referente a Tolstói, o leitor aproxima-se de um escritor em constante conflito com a sua própria arte, que criticava a literatura mas, ao mesmo tempo, considerava-a uma possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. Tolstói nunca deixou de escrever e se, por vezes, criticava seu ofício era por que se preocupava com o papel da arte, que, segundo ele, servia como legitimadora das desigualdades sociais, realimentando o mecanismo que produz as estruturas da sociedade. Sempre preocupado com os sinais de seu tempo refletia suas preocupação sociais, posições religiosas e políticas em seus romances. Os seus três grandes romances – “Guerra e Paz”, “Ana Kariênina” e “Ressurreição” – representam a agudeza crescente de sua visão crítica, ao mesmo tempo em que mostram um Tolstói que não tinha respostas para a maioria das perguntas que ele mesmo formulava, mas que nem por isso deixava de impor problemas e envolver o leitor em suas reflexões. O texto sobre ele faz uma pergunta interessante diante do fato de que Tolstói escrevia obras tão diferentes quase ao mesmo tempo, como o conto “O prisioneiro do Cáucaso” – conciso, simples, sem quase nenhuma digressão – e o romance “Anna Kariênina” – denso, complexo, longo, ramificado, daqueles que exigem grande fôlego. A pergunta feita é, qual seria o verdadeiro Tolstói? Eu, na minha simples condição de leitora de alguns de seus livros, diria que para essa pergunta não existe resposta, diante do fato de que Tolstói mostra-se honesto e competente em cada uma de suas vertentes, em cada uma de suas personalidades, afinal, como todos nós, ele deve ter tido seu lado simples e mais transparente convivendo permanentemente e, em conflito, com seu lado obscuro e menos fácil. O leitor de “Cult” ganha um ótimo presente ao final desta parte do dossiê: um trecho inédito da tradução feita por Rubens Figueiredo do romance “Ressurreição”, de Tolstói, com previsão de lançamento no Brasil para o segundo semestre de 2009.

Tchekhov: a vida que se desvia da norma

Tchekhov é o último escritor a ser analisado pelo dossiê, adepto das narrativas curtas, ele foi o mais ousado transgressor da tradição clássica dando início a uma forma e linguagem artística contemporânea. Tchekhov, o autor-médico – para quem a medicina era a esposa e a literatura, sua amante – abandonou a subjetividade adotando a concisão e a objetividade. O enredo era visto por ele como um mero coadjuvante, o que realmente importava eram as personagens, sua sutilezas e contradições interiores. Como dramaturgo, ele inovou a arte dramática a tal ponto que é difícil encontrar em suas peças componentes obrigatórios do enredo de drama, afinal, como ele mesmo dizia, seu credo estava na “importância das coisas não importantes.” O tempo é figura constante em suas peças. Ele estabelece uma ligação entre o cotidiano da vida humana e a eternidade. Tchekhov queria mostrar em sua obra que por trás das banalidades e trivialidades do cotidiano, há um mundo de conflitos trágicos e, foi seguindo essa linha que ele se tornou um dos grandes nomes russos, inesgotável na arte, no humano e no saber ser novo. Entre suas principais obras estão: “A dama do cachorrinho e outras histórias”, “A gaivota”, “O assassinato e outras histórias” e “O beijo e outras histórias.”

“O homem russo tende a admitir
a participação da loucura e da desordem
na instituição da ordem.”

Aurora Bernardini

Todos esses nomes têm uma característica em comum que sempre me chamou atenção. São personalidades singulares, misteriosas, marcadas por intensos conflitos internos. É justamente desses conflitos internos que nascem grandes escritores, aqueles que resgatam o poder crítico revelador dos abismos e das profundezas da alma humana, que se fazem contemporâneos e eternos, deixando-nos um rico percurso que deveria ser por nós valorizado e conhecido, para que possamos lançar um olhar de mudança em direção à literatura dos dias de hoje, cada vez mais vazia de sentido, crítica e reflexão. Talvez, seja por isso que os escritores russos, de uma maneira geral, exercem um fascínio tão grande no mundo atual. Eles preservam a qualidade de texto, a identidade do estilo, a riqueza das contradições, os abismos negros de nossa alma, a densidade e a complexidade da vida, traduzida também na densidade e na complexidade de algumas de suas obras. Os russos nos fazem lembrar o que é a verdadeira arte, no sentido mais sentimental e incompreendido que lhe é peculiar. Ninguém deveria deixar de conhecer uma obra clássica da literatura russa, já que ela é do tipo que transforma, amadurece, inquieta o leitor. É especial e indefinível, talvez por que menos transparente, menos fácil, tal como um grande amor. Depois de ler uma obra como “Os Irmãos Karamázovi”, de Dostoiévski, por exemplo, é impossível ser o mesmo de antes. Fecha-se a última página com aquela sensação de que muito se conheceu, muito se respondeu, mas de que há ainda muitas outras perguntas a serem respondidas neste vastíssimo oceano de segredos que é o coração humano. A Revista “Cult”, ao valorizar esses ícones da literatura mundial, acerta mais uma vez.

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