“Fui esse farsante pra sobreviver, e durante uns trinta anos só traí tua mãe nas noites e tardes em que dormi com Algisa. O que eu pretendia que tua mãe encarasse como uma vingança sórdida e meio incestuosa de um ciumento, ela via como um ato de desespero, quase infantil. “Meu amor, sei que procuras minha irmã quando não podes me encontrar”, dizia. E era verdade: as duas se pareciam tanto que às vezes eu quase me convencia de que uma podia ser a outra. Mas isso era passageiro, e logo eu me dava conta de que se tratava apenas de uma semelhança física, superficial. Ninguém podia ser tua mãe. E essa foi a única coisa que não pude fingir…” (p. 241)
“Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre…Sinto no corpo o suor da agonia. Amigo…e não primo. Esse teto baixo, paredes vazias, ausência de cor e de céu…O sol e o céu do Rio e do Amazonas…nunca mais…Só essas paredes, e esse cheiro insuportável…Agora escuto a minha própria voz zunindo e sinto fagulhas na cabeça, e a voz zunindo, fraca, dentro de mim…Não posso mais falar. O que restou de tudo isso? Um amigo, distante, no outro lado do Brasil. Não posso mais falar nem escrever. Amigo…sou menos que uma voz…” (p. 264)
HATOUM, Milton. Cinzas do norte. 1ºed. São Paulo: MEDIAfashion, 2012