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Klimt, Morte e Vida

Klimt, Morte e Vida

Como certos peixes que apenas
procuram em árduas migrações
os antigos locais de habitação
de sua espécie
estamos nós sempre em busca
_____________________dos começos
correndo para os interiores
como aventureiras aves migratórias

e por mais que nos olhem novos cenários
impulsos de vida e construção
estamos a repetir esse incômodo
objetivo de toda vida
________________________a morte
e performamos certos alongamentos
desvios vitais desse caminho

_______________________o incêndio delicado da luz de toda manhã
_______________________reverbera
_______________________até se apagar inútil
_______________________diante do sussurro constante
_______________________da velha casa.

Di Cavalcanti

Di Cavalcanti

a paisagem quieta não deixa
mover suas folhas
paradas

a suspensão do tempo
se deixa esculpir no
rosto da mulher cansada

cujos olhos estão em
estado de contemplação
desinteressada

a melancolia enfastiada
das horas quentes
adormece-lhe

a memória do sofrimento
distante e fatalmente
íntimo

a mulher admira
sem muito espanto
as mãos e os pés inchados

o clima roubou-lhe
a vontade de grandes coisas
as coisas secas

desbotam-se as cores
dos retratos rasgados
e ela não tem vontade de dizer.

Espetáculo

icasso-p.-cabeça-de-uma-mulher-dormia-estudo-para-nu-com-tecidos-1907

Ne
__bli
____na
______va

enquanto a mulher
tirava e dispunha
uma a uma
todas as suas máscaras.

Com mil cores de lantejoulas
ela as experimentava
colocando-as no lugar
do rosto
e então via
como ficava.

Diante dela
uma densa
névoa
tomava conta
de tudo.

O branco
se espraiava pela paisagem
como se fosse uma densa
cortina volátil.

A mulher se derramava
sobre o chão.

Ágil, suada, concentrada
a mulher se preparava
para a representação
do próximo ato.

Ao mesmo tempo
sobre o salto e sobre o solo
dançava
e era com o outro
e era com a própria solidão.

As bonecas de infância
lhe negaram o convite
ao chá de purpurina
verde, roxa, amarela

As bonecas de infância
ficaram quietas
assim como o nomeado esqueleto
cujo abraço ela podia fabricar
bem como o sorriso, a tristeza
a suspensa coreografia tumular.

Num átimo ela encarou
a neblina.

Por entre as finas cortinas
cuidadosamente abertas e fechadas
escapou um imenso nada.

a mulher
(e somente
ela)
escutou

alguém
cho
__ra
____va.

Iqbal-Osman

Iqbal Osman

O chão
coleciona folhas mortas.

Os homens
insistem em retirá-las.

Em vão
continuam seu trabalho

(como se fosse essa a última
tarefa de seus dias)

No mês de dezembro
as folhas diminuíam

(talvez parassem)

alguns diziam ser aquele
um tempo de milagres.

pisco-1

Fiquei surpresa com o ataque
enquanto distraída olhava o céu limpo e sem estrelas,
como um mar escuro e calmo.
Fiquei surpresa com a sombra de um casal de namorados
ao final do corredor.
E voltei rápido com medo de que fosse surpreendida.
As luzes da rua distantes embaçavam-me a vista
e eram como pedaços de fogo,
velhos e distantes,
pedaços de incêndio nessa quietude do universo.
De longe soavam como um aviso de perda,
um aviso de lugar ou de destino.
Imóveis se punham em movimento
para ainda uma vez
permanecerem imóveis,
como aquelas lembranças por ora estáticas, feito corpos embalsamados
tranquilos e quietos,
preparando o instante lascivo de explodirem.
Mesmo todos os cadáveres agora silenciam
e na noite quente desaparecem,
fogem quase imaculados,
deixando-me a sós diante de um copo de pisco
ávido por ser tomado, saboreado, sorvido.

Meu rapto

5fad3ec0c1e7e4141051847b164484caNaquele dia eu saí em busca de flores.
Naquele dia de céu vasto e claro,
de muitos frutos e folhas secas
acumuladas sobre o chão.

E porque a solidão dentro de mim
era velha e ainda nova,
a incompletude de meus anos
conduzia-me ao que talvez
fosse a minha perdição.

Posto que não resisti ao narciso muito branco.
E arranquei-o da terra,
não, não tive qualquer tipo de hesitação.

Mal este ato terminado
senti um tremendo tremor
e se avultou diante de mim
o abismo.

Com a força de um acúmulo de eternidades,
uma de suas mãos enlaçou-me
pela cintura. No mesmo instante,
eu pude sentir vagamente
os dedos da outra
fincados sobre minha coxa
receosos de que eu,
por um instante, escapasse
ao seu ávido desejo de levar-me.

Não pude divisar sua face por mim repelida
e apenas lancei um grito
longo constante e estridente,
que soou como mais um silêncio
no quieto universo.

E quando a densa névoa escura
inundou meus olhos,
por entre as dormentes sombras de seu corpo,
pude ver
e escapou-me dos lábios um suspiro de morte.

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Matisse, para edição ilustrada do Ulisses, de Joyce

e há uma solidão a colocar-se
insistente entre o homem e a mulher.
Uma solidão entre a infância e a velhice
entre a palavra e o silêncio

que agora se expande e inunda
todo esse abismo que ri e chora
porque há uma solidão nesse riso
entre o pano que desliza e a mesa

_______________________coberta pelo pó.

Há uma solidão entre as coisas
forçosamente colocadas juntas.
Entre o olhar de um que procura o outro,
em tudo se desenha um vão de morte

e mesmo numa calorosa conversa
em um nebuloso ou claro dia de sol
há uma solidão que a separa do que
julga ser e que a faz dentro daquele

lugar solitário criado por você
indescritivelmente cheia de vida.

Claude-Monet-Storm-at-Belle-Ile

Claude Monet, “Tempestade na Ilha Bela”

Não, eu não saí para comprar flores
e talvez deveria, mas há
uma tempestade bem armada
lá fora e daqui eu só vejo
a sucessão dos relâmpagos.

Minhas sombras amplificadas
na parede confundem as
fundas imagens que se formam
e ainda queimam feito fogo.

Esse mesmo fogo que arde
e me olha tão solene e tão precário.
Esse fogo que me diz:
é você
é você a tempestade.

HOME

maternidade tarsila amaral

Maternidade, de Tarsila do Amaral – 1938

Neste silêncio estendido
e nas palpitações de uma espera
pela fala que não quero ouvir
de dentro de situações
que me repelem.

Afastam-se e afasto-me
daqui. Volto para as
rotinas intermináveis e
repetidas destes meus dias.

Volto para o lençol
nas manhãs desarrumado
para o insistente voo
dos pássaros e para
aquele café com leite

de todos os gostos
e de nada. Para a água
a enxaguar os pratos
junto com o sabor daquele
tempero ralo e ultrapassado.

Eis que se estende
generoso o silêncio
e volto a cobrir-me do
invencível pó a cerrar
meus olhos, a suspender
minha voz e prolongar

essa estação entre flores
e frutos. Volto para
a estante da sala
para a bagunça da casa
para aquele vão
onde não me encontro e
para onde nem sei se vou.

A Dança

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Este poema faz parte do livro “Nymphé e outros poemas”, à venda no site da Editora Medita

Uma sacerdotisa a sibilar
seu canto em um corpo de volúpia.
Assim como as inspiradas por Apolo
eleva-se no equilíbrio
e dança
como quem pisa em pétalas
leve e serena.

Toda vestida de branco
imersa e refeita em luz
aérea.
Mas eis que surge um incêndio
no seio das mansas árvores
agora violentas.
Porta a tua flor rubra
pinta tua boca e tuas faces
aguça teu ávido olhar
e dança
derramando sobre si o vinho
assim como as extasiadas por Dionisio.

Arrebente os princípios
habite o instante do raro frêmito
aquele encontro desejado
em que somos um e o outro
no mesmo tempo.

É ela que sabe
fascinar porque experimenta
o desafio da coexistência
e se faz harmoniosa e suplicante
contida e derramada

por um instante
dança para a vida
por outro
corre para a morte
e começa
o nascimento da sua tragédia.