Balthus
(4)
Um dia depois de percorrer com os olhos aquele velho caderno de receitas, onde pude ver as formas redondas e indecisas de minha letra de criança, detalhando a quantidade de ovos, as doses de açúcar, as medidas de sal, percorri, com o corpo tenso e a mente inquieta, os velhos cômodos de minha infância. Mudados pelo tempo, por outras mãos, olhei os detalhes, e fui desenhando em minha mente as paisagens de antes. As árvores do pomar continuavam as mesmas, mas sem o mesmo verde. Havia menos flores, menos frutas, e o chão estava mais frio, com novos pisos. Estranho percorrer o mesmo lugar, e que já é outro. Andar usando as mesmas pernas, que já são outras. O tempo passou e eu via. Não havia mais nenhuma lembrança minha, a não ser algumas fotografias. No quartinho ao fundo, muitas coisas ainda estavam amontoadas, em desordem, na companhia de finas camadas de poeira. Pude ver o banco de minha escrivaninha, onde eu gostava de sentar pra ler e escrever, com a mesma letra redonda e indecisa do caderno de receitas, as minhas primeiras histórias, e também minha poltrona florida. O impacto da visita parece ter me dado dores, pois à noite não conseguia dormir, tinha o corpo como se tivessem me batido durante horas. Lembro de alguém que dizia: o tempo faz doer. Contra essas dores parece não existir receita. No caderno velho, onde um dia eu escrevi como fazer doces e bolos, não escrevi como aliviar-me dos anos. Nisso, como em tantas outras coisas, traiu-me minha letra da infância.
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