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Archive for the ‘SORTILÉGIOS’ Category

Miró, Constelação: a estrela da manhã

Miró, Constelação: a estrela da manhã

Sobre aquele chão amassado de frutas e folhas, meus pés brincavam, percorrendo todos os caminhos. As árvores largas, de altura generosa e folhas fartas deixavam a luz escorrer por entre seus espaços, entre vastos e estreitos. Os galhos desenhavam formas ideais para construir uma casa com todos aqueles restos de madeira velha. Éramos os seus construtores. Habitávamos lá no alto. De toda conhecida liberdade, provávamos um gosto à vontade, sem saber de nosso futuro, éramos tão presentes e nem sabíamos. Alguém corria para o pequeno portão cinza ao final do muro. Alguém ouvia os latidos vindos do outro lado. Alguém corria e os outros seguiam atrás. O quintal se lhe abria como uma caixa de surpresa, qualquer caixa de infância. Multiplicavam-se os esconderijos e os mitos. Não é tudo que recordo de tantos dias sob aquelas árvores cacheadas, pisando aquele chão fruteado. Havia também o velho galinheiro, outro projeto de casa, com cômodos e até pequenas toalhas. Certo dia apenas me esgueirei sozinha, por entre ramos e coisas silenciosas. Não sabia nada sobre os meus fantasmas e fazia dali minha casa. As árvores eram meu cobertor de fragmentos amontoados, as frutas que não comi minhas divindades mascaradas, os nomes e coisas que inventei, eram meus deuses e meus lugares. Naquele lugar onde derramei minha infância, a infância da qual às vezes não tenho saudade, mas que me chama de dentro da sua repetida memória. Lugar de acasos. Naquele cheiro onde reconhecia meu corpo, naquelas sombras onde eu podia ver, naqueles buracos onde eu tinha medo de entrar, naquele seco mar que guardava meu corpo, meus intermitentes calores, era naquele chão, que hoje nem existe mais, onde eu deitava as minhas primeiras ardências. Talvez lá outrora estivemos eu e você, mas já não me lembro. Certamente estivemos, já me lembro.

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Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

(16)

O homem e o seu lugar. Suas estradas, seus becos e esconderijos, os lugares onde passou, onde amou, onde viveu suas mortes. Ao homem fala o seu lugar e ao seu lugar o homem fala. Sempre a lembrança de suas paisagens feito folha sempre destinada à letra, sempre o calor daqueles anos.
Antes de morrer, era esse o último pedido do amigo de meu pai. Voltar aonde começou. Uma terra de cercas, muito pó levantado, pouca gente, tanto silêncio. Um lugar parado, sem movimento, exceto o lento cair das folhas, exceto o vagaroso suspirar do vento. O amigo de meu pai queria ver o seu lugar, para só ali viver a última e derradeira morte.
Ele ainda contou, quase suas últimas palavras, que quando as montanhas verdes o olharam de novo, um frio percorreu todo seu coração, as mãos suaram, os olhos ficaram de repente molhados, embaçada a paisagem. O cheiro lembrava o primeiro almoço farto. A casa trazia suas brincadeiras. Os retratos esculpiam a sua inocência. Tudo reverberava seus erros.
Meu pai disse que ele morrera feliz. O peso da morte, quando voltamos para nosso lugar, teria contado o amigo de meu pai, se ameniza diante de tantas mortes que ali há. As primeiras roubando o espaço das últimas, concedendo o perdão a todos os pecados.
E ele olhou pela última vez o horizonte da estrada por onde tantas vezes passara.

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SORTILÉGIOS

16
Imagem: Impressões

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Lasar Segall

Lasar Segall

(14)

Bruxa

A olhar o distante a desenhar detalhes a mulher: transgride. No rastro do amor morto, ouvindo o amor impossível. Sufocada, sufocada de tanto amor, a mulher insiste. Nada. Ouvia o sopro morno da angústia. Ardia em febre nos últimos dias. Eu tinha uma amiga que me lembrava os romances. Dividida, impetuosa, aflita. Sabia que sim, sabia que era pra ser assim. Ela sabia o que era. Bonita. Nem jovem, nem velha. Daquelas, ali, eternas. O corpo e cor(ação) fracos. De aço. Achados. Magros. Doídos. Doloridos. Durante. Dias. Dúvidas. Diante. Duas. Doze. Dar. Durar. Delicia. De amar. Demais. Demenos. Dançar. Doce. (in) Decente. No som do sopro a sereia se faz. Salva o abismo dos olhos de quem não mais a pode tirar. Fonte e furor das paixões erradas. Traições mascaradas. Tabus amaldiçoados. Fogo. Fartura. Flor. Força. Fruto (o proibido). Formosura. Fundura. Ela era assim. Uma amiga. No concordar das distâncias: ela transgride. Mulher que não se cabe de tanta vida.

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Pleiades - Max Ernst (1920)

Pleiades – Max Ernst (1920)

(13)

Não leiam se não quiserem ver uma descrição no mínimo “nauseante” do que presenciei certa manhã. Havia acordado há poucas horas. Ainda estava naquele estado de sonolência e incompreensão de si e da realidade ao redor que caracteriza, na maioria das vezes, as horas terríveis do nascer novamente após uma “quase morte”. Depois de tomar meu leite com café na cozinha, abri a porta que dava para a lavanderia. Estava com a ideia de colocar uma roupa no sol. Foi quando meus passos pararam. De repente. Levei minhas mãos ao peito, devo ter contorcido minha face com uma expressão de nojo e repugnância, meus olhos devem ter estalado, o rosto ficado branco. Eu via. Não pude mais me mover um centímetro que fosse para frente, apenas consegui fugir para trás e fechar a porta que segundos antes eu tinha aberto. A imagem voltava. Insistentemente. Principalmente os aspectos mais repugnantes. Feio, feito coisa feita. E subia uma ânsia, uma vontade de colocar para fora a gosma que se formava dentro de mim. Se me lembrava, logo vinha a estranha sensação. Não poderia mais sair. Não sairia de casa nunca mais. Qualquer porta que abrisse, de manhã, logo depois de acordar, ele estaria lá, à minha espera. O rato morto, gordo, grande, com duas marcas de sangue no pescoço. Dentadas. O rabo comprido, desenhando uma curva no chão e, diante da boca, o vômito da morte, uma gosma amarela, ainda molhada. Quase como um pedaço do inferno. Foi o que eu vi.

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Matisse

Matisse

(12)

Arcaica. Vejo-a sentada de costas. Um corpo reto, correto, as formas sutis dividindo a paisagem. Os cabelos presos, negros, o corpo todo à mostra, sem vestes. Os braços escondidos em sua frente não se deixam ver. Ela se reserva. Mostra a curvatura sensual da cintura, a timidez dos movimentos breves. Pode estar lendo um livro, ouvindo uma música, ou simplesmente de olhos imóveis arrastados pelo chão. Pode estar pensando feliz. Ou perseguindo-se triste. A tristeza sem nome, a tristeza tão desavisada. Pode ter todas as idades. As costas denunciam uma firmeza atemporal, uma eternidade constante, fora do tempo, no tempo ontem amanhã. Conquistadora de todos que seu olhar atravessam. Persistente feiticeira de graças infindáveis, jeito doce, movimentos como que sedentos de vontade, não cabendo em si de tanta beleza, de tanta sedução infatigável. Vejo-a inteligente concentrada. Passando pelo conhecimento de toda poesia, de toda matemática. Da sabedoria prudente. Também entre sombras pode ser encontrada. Sabe-se lá que névoas a perturbam, que noites de todas as noites, que descida aos infernos, que trama enredada no limiar da vida. Fértil, sempre fértil. Seu largo quadril assentado sobre a cadeira revela tamanha força, expressão de vida selvagem, moldada com a cera da origem quase incendiária. Ela poderia mostrar-me o rosto. Deixar-me ver seus tons, suas marcas. Mas não há chance de olhar-me. Luta em segredo. Contra o mundo, contra si mesma. Nunca. Nunca a saberá por inteira. O outro lado. Alma educada na liberdade. Um verso perdido no corpo pelo vinho sacralizado. Beleza de gestos cheios de saudade. Olhar-te sem dúvida apavora. Mas pedes o que quiser. Mulher.

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Picasso

Picasso

(11)

O corpo pede a si mesmo. O corpo pede um outro. Limites, luares, lugares. Era um lugar que quase ia sozinho, ansioso, suado, faltoso. Tudo começava pelo meio. Pelo centro onde a percepção do novo se dava. E se espalhava. Em direção aos pés e às extremidades da cabeça. Cada fio de cabelo espalhado sobre a superfície lisa, com algumas dobras. Os pés procuravam o outro em quem se encostar, ou contorciam-se em si mesmos, girando para fora, para dentro, para fora, para dentro, para fora, para dentro. As pernas faziam curvas no ar, desenhavam o mundo em derramamentos e ascensão. Tinham o seu par equivalente, a conversa ia longa e libidinosa, entre tonta vertigem gostosa. O ventre se expulsava de si, esticando-se, abrindo todos os seios, encolhendo-se de modo a preparar o próximo movimento. O rosto. Em chamas. A boca vermelha, entre aberta, a língua em constante agitação interna. A secura buscando a água. A imobilidade farejando o momento. O nariz entusiasmado. Os olhos… Ah, estes iam nem abertos nem fechados. Em zona de tempestade e bonança, quase uma onda prestes a estourar, quase um rio aparentando calma, linear. Os olhos eram um sortilégio à parte. No prazer dilatavam, atraíam, faziam que iam e ficavam, iam e ficavam. Lançavam-se sobre os pelos espalhados, sobre o ar com cheiro de suor enfeitiçado, lançavam-se sobre outro olhar perdidos na própria semelhança de estrutura, apenas com desvio de cor, com desvio de brilho. Apenas. Os olhos se fechavam enquanto o centro explodia em festa. Os braços e as mãos agora pousados em estado de morte. Os braços e as mãos que tanto buscaram. Agora pousados, nunca mais sozinhos. Laços, linhas, velas, lamparinas, noite, dia, ávidos, fêmea, macho. Um ao outro destinados pelo erótico abraço.

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Manet, O limão (1880)

Manet, O limão (1880)

(10)

Os assuntos que tremem junto ao peito, que se escondem em algum lugar aonde não se chega. Os sofrimentos adormecidos. Quantos séculos para acordá-los. Talvez nunca. Um dia olhei para aquela mulher, de pele cansada e olhos enrugados, esperando…Ela olhava, assim que escutava algum barulho, ou nem precisava escutá-lo. Os movimentos já iam sozinhos do pescoço ao longe, e depois, do longe ao chão. Não era nada. Um dia olhei para aquela mulher que passava os dias sentada. Costurando os fios esticados do tempo, calculando a posição do sol, pensando nas formas das nuvens. Quando passava rápido, também olhei, olhei para o homem que fazia a guarda da rua. Ele a guardava de que? Dos homens que podiam roubar as casas? Mas não havia homens. Dos cachorros que podiam escapar e atacar alguém? Mas não havia cachorros, nem pra onde fugir, nem quem atacar. Talvez, é, talvez ele a guardasse do tédio, e ia e vinha, com um radinho nas mãos. Podia-se escutar os chiados baixos, vez ou outra alguma música. Romântica. Um dia olhei, do meio do mato, o meio da cara do boi. Onde os olhos? Pareciam virados de costas. Revirados por dentro, calculados pelo infinito de onde tinham surgido, para onde um dia teriam voltado. Olhei de novo. Queria que ele me encontrasse, que me dissesse, que me chorasse…Eles só tombaram em direção ao chão de terra. Todos longes. Muito longes. Sozinhos. Todos sozinhos.

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Emil Nolde, Mask Still Life III, 1911

Emil Nolde, Mask Still Life III, 1911

(9) La nuit

Ao universo tão reto, tão certo, o homem que sofria pedia clemência. A visão do céu sem traumas, longo e longe, sem sinal de mácula. A ordem das tempestades alternava-se na mais tranquila perfeição com a ordem dos dias ensolarados. Os desenhos das nuvens, caprichosos, quando havia nuvens. A ordem cósmica, o mecânico amanhecer e anoitecer, o abrir das estrelas, o dançar da luz do sol. Nada de imprevisto. Nada que não pudesse ser medido pelos mais avançados centros meteorológicos. Insuportável ter que ver na ordem de fora os reflexos distorcidos do imenso caos de dentro. O homem se sentia esmagado diante do universo impiedoso. Que ao menos amanhã ele não tivesse que abrir a mesma janela, no mesmo ritmo, e sentir no rosto o facho de luz do mesmo sol, ou as gotas de chuva da mesma tempestade, ou o vento cálido do mesmo outono cheio de rumo. Que ele, perdido de si, sem rumo, encontrasse as coisas que o rodeavam também um pouco perdidas, também um pouco chorosas. Mas ele sabia que não. Ele sabia que o céu continuaria lá no alto, e que ele nem sequer seria visto. Quanta pretensão! Pedir ao universo que mude sua santa ordem, tão comemorada por todos, agradecida, abençoada, apenas para que ele pudesse ver, em algum lugar, a mesma infinita desordem que lhe devorava todas as pontas da alma, apenas para que não fosse tão monstruoso o nascer e morrer de todos os dias. O homem sabia que era inútil. O universo sabia que era inútil, mas, oferecia a pedida clemência. As horas em que as sombras saíam de casa e deixavam ver quase nada. A hora do silêncio. Extenso. O abraço mascarado. Podes chorar, agora só te veem as estrelas. E o universo presenteava o homem com a noite. A noite onde os fantasmas saem.

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Gianlorenzo Bernini, O êxtase de Santa Teresa (1646-1652)

Gianlorenzo Bernini, O êxtase de Santa Teresa (1646-1652)

(8)

Foi quando eu encostei de novo meu rosto no teu, e ficamos ali, apenas escutando o sopro alucinado da respiração, adiando o instante do beijo, do gosto tardio, sempre lembrado. Os olhos molhados, saturados de desejo, imaginando as formas do corpo, o cheiro, a intensidade do toque, a lógica mil vezes repetida, sempre única da atração. E eu via tua boca, via minhas mãos, eu escutava como uma louca em êxtase o quanto pulsava meu coração. Revia todos os lugares, a praia tão reta e calma, a mata densa, a noite em derramamento de estrela, a dedicatória, a aula, o escondido, o sorriso, via todo o medo que nascia de mim, e morria, assim que me encontrava a vontade. Escutava as mesmas músicas, andava no ritmo das mesmas caminhadas, e conversava muda, calada, o diálogo de todos os nossos séculos. E, renascendo a surpresa do primeiro encontro, te encontrava de novo, e de novo, e de novo, no mesmo respirar enlouquecido, no mesmo beijo violento e delicado, e eu ouvia os gritos, e eu sentia minhas lágrimas. Nada, nada além de eternidade, tua alma entregue em tempo de saudade. E agora, no silêncio, você vai dizer.

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