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Emil Nolde, Mask Still Life III, 1911

Emil Nolde, Mask Still Life III, 1911

(9) La nuit

Ao universo tão reto, tão certo, o homem que sofria pedia clemência. A visão do céu sem traumas, longo e longe, sem sinal de mácula. A ordem das tempestades alternava-se na mais tranquila perfeição com a ordem dos dias ensolarados. Os desenhos das nuvens, caprichosos, quando havia nuvens. A ordem cósmica, o mecânico amanhecer e anoitecer, o abrir das estrelas, o dançar da luz do sol. Nada de imprevisto. Nada que não pudesse ser medido pelos mais avançados centros meteorológicos. Insuportável ter que ver na ordem de fora os reflexos distorcidos do imenso caos de dentro. O homem se sentia esmagado diante do universo impiedoso. Que ao menos amanhã ele não tivesse que abrir a mesma janela, no mesmo ritmo, e sentir no rosto o facho de luz do mesmo sol, ou as gotas de chuva da mesma tempestade, ou o vento cálido do mesmo outono cheio de rumo. Que ele, perdido de si, sem rumo, encontrasse as coisas que o rodeavam também um pouco perdidas, também um pouco chorosas. Mas ele sabia que não. Ele sabia que o céu continuaria lá no alto, e que ele nem sequer seria visto. Quanta pretensão! Pedir ao universo que mude sua santa ordem, tão comemorada por todos, agradecida, abençoada, apenas para que ele pudesse ver, em algum lugar, a mesma infinita desordem que lhe devorava todas as pontas da alma, apenas para que não fosse tão monstruoso o nascer e morrer de todos os dias. O homem sabia que era inútil. O universo sabia que era inútil, mas, oferecia a pedida clemência. As horas em que as sombras saíam de casa e deixavam ver quase nada. A hora do silêncio. Extenso. O abraço mascarado. Podes chorar, agora só te veem as estrelas. E o universo presenteava o homem com a noite. A noite onde os fantasmas saem.

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Imagem: DivulgaçãoPodes ver a passagem
do caos ao cosmo.
Perceber escondida
nas vestes da nobreza
os ardis profundos
da morte.

Pode se fartar
no banquete.
Dividindo a vastidão
com a pobreza,
embriagando-se com
intermináveis deleites.

Podes conceber o prazer
depois de nascer da beleza.
Podes implorar o perdão
de todos os deuses.
Mas não há de trair
a sua natureza.

Podes plantar
armadilhas
das quais a maior
será contra ti mesmo.
Pois há em ti
tanta miséria
quanto há fartura.

E apenas aquela
que deixaste vagar
responde aos teus instintos.
Por viver nela
o denso erotismo
que só junto ao teu
se pode salvar. (MV)

Feliz ano Eros a todos os leitores!

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(1)

Fecho a cortina. Já que não pode cair a tempestade. E eu só pedia pela tempestade. Longa e forte, forte e longa, contrariando as expectativas de que o que é longo não pode ser forte e vice-versa. Mas não veio minha tempestade longa. Deixou-me na imaginação o desejo do céu escuro, cinza, em potência de desabamento. O desabamento de tudo. As roupas estendidas no varal. A moça lavando a calçada na mais perfeita calma de seus dias iguais. Os livros (inúteis) enfileirados na estante, jogados no chão, abertos em páginas voluntariosas, os livros encerrados em caixas, esquecidos. As caixas. Os vasos de flores em cima da mesa. Os enfeites de Natal. As bolas coloridas. As comidas dentro da geladeira. Os pratos, copos, louças, xícaras, pires nos armários! As roupas multicores no guarda-roupa. Pra que tanta roupa? As maquiagens, os desodorantes, os sabonetes, os perfumes. Os contratos de aluguel, os papeis de corrupção. Sim, as peças de baixo, ah, as peças de teatro. Os personagens. Os passos de dança. A cama onde deito para não dormir. A cama onde contemplo a vida, onde percebo a insistência dos pensamentos. Não veio a tempestade. Longa e forte. O meu desejo de que tudo fosse pelos ares. Explosão! As coisinhas de que não gosto. A casa. A dor. A velha fotografia. (MV)

da série Caprichos, Goya

da série Caprichos, Goya

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