Ninguém consegue ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de meia dúzia. Além disso, não é importante ler, mas reler. A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males do homem, já que tendeu a multiplicar até a vertigem textos desnecessários.
– No meu curioso ontem – respondi -, prevalecia a superstição de que entre cada tarde e cada manhã acontecem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém conhecia a história prévia daqueles entes platônicos, mas, sim, os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações e as mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário com a pridente imprecisão que era própria do gênero.
Tudo isso era lido para o esquecimento, porque em poucas horas era apagado por outras trivialidades. […] As imagens e a letra impressa eram mais reais que as coisas. Somente o publicado era verdadeiro. Esse est percipi ( ser é ser percebido) era o princípio, o meio e o fim de nosso singular conceito do mundo. No ontem que me tocou, as pessoas eram ingênuas; acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim o afirmava e repetia o seu próprio fabricante. Também eram frequentes os roubos, embora ninguém ignorasse que a posse de dinheiro não dá maior felicidade nem maior tranquilidade.
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Depois de caminharmos quinze minutos, dobramos à esquerda. No fundo divisei uma espécie de torre, coroada por uma cúpula.
– É o crematório – disse alguém. – Dentro está a câmara letal. Dizem que foi inventada por um filantropo, cujo nome, creio, era Adolf Hitler. (p. 72 e 75) trechos de Utopia de um homem que está cansado
Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. A esperada cama duplicava-se vagamente num cristal, e o mogno polido me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já se despira. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não restavam móveis nem espelhos. Não havia espada alguma entre nós. Como a areia, escoava o tempo. Secular na sombra, o amor fluiu e possuí a imagem de Ulrica pela primeira e última vez. (p. 19)
trecho de Ulrica
Disse-me que seu livro se chamava O livro de areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim.
Pediu-me que procurasse a primeira folha.
Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o polegar quase grudado ao índice. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.
– Agora procure a final.
Também fracassei; mal consegui balbuciar com uma voz que não era a minha:
– Isto não pode ser.
Sempre em voz baixa, o vendedor de bíblias disse:
– Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que são numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número. (p. 97)
trecho de O livro de areia
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