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Posts Tagged ‘linguagem’

Segundo José Antonio Pasta, “não poderíamos dizer o que esse livro é, sem traí-lo em sua natureza própria”.

“Sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?” (p. 18)

“É da morte, da velhice, da perda de contato que a linguagem deveria se alimentar. Sou capaz de aceitá-la para a proteção de nosso corpo, para tornar nossa mente amena, espécie de anestésico natural, como as toxinas que alguns animais liberam para não sentir que estão sendo devorados. Mas é o contrário que se dá: morremos quietos, ou aos ber-ros desarticulados, mas vivemos o esplendor da saúde de nosso corpo cercados por vocábulos que, à primeira chance, saltam à frente e roubam minuciosamente nosso dia.” (p. 28)

“Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da nossa natureza” (p. 24)

Nuno Ramos, Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008

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Ninguém consegue ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de meia dúzia. Além disso, não é importante ler, mas reler. A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males do homem, já que tendeu a multiplicar até a vertigem textos desnecessários.
– No meu curioso ontem – respondi -, prevalecia a superstição de que entre cada tarde e cada manhã acontecem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém conhecia a história prévia daqueles entes platônicos, mas, sim, os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações e as mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário com a pridente imprecisão que era própria do gênero.
Tudo isso era lido para o esquecimento, porque em poucas horas era apagado por outras trivialidades. […] As imagens e a letra impressa eram mais reais que as coisas. Somente o publicado era verdadeiro. Esse est percipi ( ser é ser percebido) era o princípio, o meio e o fim de nosso singular conceito do mundo. No ontem que me tocou, as pessoas eram ingênuas; acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim o afirmava e repetia o seu próprio fabricante. Também eram frequentes os roubos, embora ninguém ignorasse que a posse de dinheiro não dá maior felicidade nem maior tranquilidade.

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Depois de caminharmos quinze minutos, dobramos à esquerda. No fundo divisei uma espécie de torre, coroada por uma cúpula.
– É o crematório – disse alguém. – Dentro está a câmara letal. Dizem que foi inventada por um filantropo, cujo nome, creio, era Adolf Hitler. (p. 72 e 75) trechos de Utopia de um homem que está cansado

Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. A esperada cama duplicava-se vagamente num cristal, e o mogno polido me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já se despira. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não restavam móveis nem espelhos. Não havia espada alguma entre nós. Como a areia, escoava o tempo. Secular na sombra, o amor fluiu e possuí a imagem de Ulrica pela primeira e última vez. (p. 19)
trecho de Ulrica

Disse-me que seu livro se chamava O livro de areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim.
Pediu-me que procurasse a primeira folha.
Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o polegar quase grudado ao índice. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.
– Agora procure a final.
Também fracassei; mal consegui balbuciar com uma voz que não era a minha:
– Isto não pode ser.
Sempre em voz baixa, o vendedor de bíblias disse:
– Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que são numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número. (p. 97)
trecho de O livro de areia

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Lembremos Os solitários: “Jamais fazemos senão começar, e […] não há absolutamente outra ligação em nossa existência que não uma sucessão de momentos presentes, da qual o primeiro é sempre aquele que está em ato. Morremos e nascemos a cada instante de nossa vida […]” Dizer todos os começos seria dizer todos os instantes: mas essa extrema fidelidade da linguagem à vida é dificilmente pensável. Supondo-se mesmo que a isso se chegasse, seria substituir a vida pela linguagem. Aquela se esvaeceria na palavra que a desdobra.

Jean Starobinski em Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 262. Trad. Maria
Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

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Eu tenho à medida que designo e este é o esplendor de se ter linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscar – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho de ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que tenho o que ela não conseguiu.

A paixão segundo G.H, Clarice Lispector

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