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Posts Tagged ‘prosa’

Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

(16)

O homem e o seu lugar. Suas estradas, seus becos e esconderijos, os lugares onde passou, onde amou, onde viveu suas mortes. Ao homem fala o seu lugar e ao seu lugar o homem fala. Sempre a lembrança de suas paisagens feito folha sempre destinada à letra, sempre o calor daqueles anos.
Antes de morrer, era esse o último pedido do amigo de meu pai. Voltar aonde começou. Uma terra de cercas, muito pó levantado, pouca gente, tanto silêncio. Um lugar parado, sem movimento, exceto o lento cair das folhas, exceto o vagaroso suspirar do vento. O amigo de meu pai queria ver o seu lugar, para só ali viver a última e derradeira morte.
Ele ainda contou, quase suas últimas palavras, que quando as montanhas verdes o olharam de novo, um frio percorreu todo seu coração, as mãos suaram, os olhos ficaram de repente molhados, embaçada a paisagem. O cheiro lembrava o primeiro almoço farto. A casa trazia suas brincadeiras. Os retratos esculpiam a sua inocência. Tudo reverberava seus erros.
Meu pai disse que ele morrera feliz. O peso da morte, quando voltamos para nosso lugar, teria contado o amigo de meu pai, se ameniza diante de tantas mortes que ali há. As primeiras roubando o espaço das últimas, concedendo o perdão a todos os pecados.
E ele olhou pela última vez o horizonte da estrada por onde tantas vezes passara.

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Van Gogh, Sower with Setting Sun, 1888

Van Gogh, Sower with Setting Sun, 1888

(15)

80

Eu nunca o tinha visto pelas ruas. E ele me surgiu, de repente, no inacreditável da visão que vê, mas não percebe a si mesma. Por isso, no começo, era como se eu nem visse. Primeiro, vi algo que se parecia com uma bicicleta. Tinha as rodas uma de cada lado, os canos no centro, o guidão à frente, as correntes, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada disso. As rodas da bicicleta também eram rodas de uma moto, com pneus grossos e outros adornos. O guidão era tão cheio de coisas penduradas por toda parte que mais parecia o comando de uma nave espacial indo direto dali para outro lugar. Uma espécie de ferramenta foi acoplada ao guidão para fazer as vezes de câmbio de troca de marcha. E os penduricalhos se espalhavam por todos os lados. Na parte de trás, uma caixa dessas de plástico dava vida a um depósito de muitas coisas que naquele momento eu ainda não podia saber o que eram. Meus olhos viam um formidável produto de engenharia que eu não conseguia classificar, nem distinguir, nem esquecer. Biciclomoto talvez. Seu hábil condutor era conhecido como 80. Isso mesmo. Seu nome era um número, ou seu número era um nome, como queiram. Ninguém nunca soube me explicar porque ele se chamava assim. 80 era tido como louco das ideias. Varrido, do tipo que ninguém dá muita atenção. Dele só se sabia que andava pelas ruas da cidade noite e dia, dia e noite. Conduzindo a sua biciclomoto, falando coisas que ninguém entendia, que ninguém ouvia, trombando nas esquinas, batendo nos muros, desafiando as sarjetas e todas as leis físicas do deslocamento. Nesse dia vi 80 enquanto estava parada no semáforo. Era meio-dia. Vi um homem vindo rápido em cima de algo como uma bicicleta. O sol ia alto e a luz se intercalava com os vãos deixados pela sua imagem. Só me chegava um vulto. Ele parou quando à sua frente se colocou o muro de uma casa vizinha. Olhou para os lados como quem não olha. Deu marcha ré, fez com os lábios o barulho do acelerador da moto, pude ouvir e ver o fazer-se do movimento. Arrumou alguns penduricalhos, conferiu o motor, o estado das rodas. Brigou com a calçada, tropeçou na sarjeta, insistiu com o espaço e, num instante fugitivo, caiu de um só tombo no chão. A biciclomoto também tombou perfeitamente encaixada no seu corpo e rolaram pela rua abaixo milhares de laranjas e limões que ele deveria ter recolhido das árvores que visitaram o seu caminho naquele dia. Tudo que ele tinha recolhido agora ia embora descendo aquela rua. 80 estava imóvel. Completamente. Parecia morto, mas poderia ser uma encenação, uma encenação de morte, afinal, não diziam que ele era louco. O semáforo abriu. O carro andou. 80 ficou para atrás. Os carros atrás do meu seguiram. Os que vinham também. Ninguém parou. Ninguém o viu deitado, entre a biciclomoto, iluminado pelo sol. Fiquei sabendo, nem me lembro mais como, que ele se levantara um tempo depois. Me disseram que era comum. Que ele sempre se jogava e se levantava depois. Ah! É louco! Me disseram que ele já estava de pé, arrumando a sua moto, vendo se nada estava fora do lugar, e recolhendo, uma a uma, todas as laranjas e os limões que haviam rolado rua abaixo.

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Matisse

Matisse

(12)

Arcaica. Vejo-a sentada de costas. Um corpo reto, correto, as formas sutis dividindo a paisagem. Os cabelos presos, negros, o corpo todo à mostra, sem vestes. Os braços escondidos em sua frente não se deixam ver. Ela se reserva. Mostra a curvatura sensual da cintura, a timidez dos movimentos breves. Pode estar lendo um livro, ouvindo uma música, ou simplesmente de olhos imóveis arrastados pelo chão. Pode estar pensando feliz. Ou perseguindo-se triste. A tristeza sem nome, a tristeza tão desavisada. Pode ter todas as idades. As costas denunciam uma firmeza atemporal, uma eternidade constante, fora do tempo, no tempo ontem amanhã. Conquistadora de todos que seu olhar atravessam. Persistente feiticeira de graças infindáveis, jeito doce, movimentos como que sedentos de vontade, não cabendo em si de tanta beleza, de tanta sedução infatigável. Vejo-a inteligente concentrada. Passando pelo conhecimento de toda poesia, de toda matemática. Da sabedoria prudente. Também entre sombras pode ser encontrada. Sabe-se lá que névoas a perturbam, que noites de todas as noites, que descida aos infernos, que trama enredada no limiar da vida. Fértil, sempre fértil. Seu largo quadril assentado sobre a cadeira revela tamanha força, expressão de vida selvagem, moldada com a cera da origem quase incendiária. Ela poderia mostrar-me o rosto. Deixar-me ver seus tons, suas marcas. Mas não há chance de olhar-me. Luta em segredo. Contra o mundo, contra si mesma. Nunca. Nunca a saberá por inteira. O outro lado. Alma educada na liberdade. Um verso perdido no corpo pelo vinho sacralizado. Beleza de gestos cheios de saudade. Olhar-te sem dúvida apavora. Mas pedes o que quiser. Mulher.

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Picasso

Picasso

(11)

O corpo pede a si mesmo. O corpo pede um outro. Limites, luares, lugares. Era um lugar que quase ia sozinho, ansioso, suado, faltoso. Tudo começava pelo meio. Pelo centro onde a percepção do novo se dava. E se espalhava. Em direção aos pés e às extremidades da cabeça. Cada fio de cabelo espalhado sobre a superfície lisa, com algumas dobras. Os pés procuravam o outro em quem se encostar, ou contorciam-se em si mesmos, girando para fora, para dentro, para fora, para dentro, para fora, para dentro. As pernas faziam curvas no ar, desenhavam o mundo em derramamentos e ascensão. Tinham o seu par equivalente, a conversa ia longa e libidinosa, entre tonta vertigem gostosa. O ventre se expulsava de si, esticando-se, abrindo todos os seios, encolhendo-se de modo a preparar o próximo movimento. O rosto. Em chamas. A boca vermelha, entre aberta, a língua em constante agitação interna. A secura buscando a água. A imobilidade farejando o momento. O nariz entusiasmado. Os olhos… Ah, estes iam nem abertos nem fechados. Em zona de tempestade e bonança, quase uma onda prestes a estourar, quase um rio aparentando calma, linear. Os olhos eram um sortilégio à parte. No prazer dilatavam, atraíam, faziam que iam e ficavam, iam e ficavam. Lançavam-se sobre os pelos espalhados, sobre o ar com cheiro de suor enfeitiçado, lançavam-se sobre outro olhar perdidos na própria semelhança de estrutura, apenas com desvio de cor, com desvio de brilho. Apenas. Os olhos se fechavam enquanto o centro explodia em festa. Os braços e as mãos agora pousados em estado de morte. Os braços e as mãos que tanto buscaram. Agora pousados, nunca mais sozinhos. Laços, linhas, velas, lamparinas, noite, dia, ávidos, fêmea, macho. Um ao outro destinados pelo erótico abraço.

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Manet, O limão (1880)

Manet, O limão (1880)

(10)

Os assuntos que tremem junto ao peito, que se escondem em algum lugar aonde não se chega. Os sofrimentos adormecidos. Quantos séculos para acordá-los. Talvez nunca. Um dia olhei para aquela mulher, de pele cansada e olhos enrugados, esperando…Ela olhava, assim que escutava algum barulho, ou nem precisava escutá-lo. Os movimentos já iam sozinhos do pescoço ao longe, e depois, do longe ao chão. Não era nada. Um dia olhei para aquela mulher que passava os dias sentada. Costurando os fios esticados do tempo, calculando a posição do sol, pensando nas formas das nuvens. Quando passava rápido, também olhei, olhei para o homem que fazia a guarda da rua. Ele a guardava de que? Dos homens que podiam roubar as casas? Mas não havia homens. Dos cachorros que podiam escapar e atacar alguém? Mas não havia cachorros, nem pra onde fugir, nem quem atacar. Talvez, é, talvez ele a guardasse do tédio, e ia e vinha, com um radinho nas mãos. Podia-se escutar os chiados baixos, vez ou outra alguma música. Romântica. Um dia olhei, do meio do mato, o meio da cara do boi. Onde os olhos? Pareciam virados de costas. Revirados por dentro, calculados pelo infinito de onde tinham surgido, para onde um dia teriam voltado. Olhei de novo. Queria que ele me encontrasse, que me dissesse, que me chorasse…Eles só tombaram em direção ao chão de terra. Todos longes. Muito longes. Sozinhos. Todos sozinhos.

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IMG031(7) Lamento

Não tinha como escrever. E apenas olhava a estrada. Por trás do vidro no qual corria a água da chuva, por trás do vidro ligeiramente embaçado, por trás do vidro desenhado, meus olhos encontravam o verde, as distantes montanhas, a imensidão do céu derramando-se, impiedoso e grandioso, na melancolia suave da terra. Meus olhos perdidos em abismos, em mil lembranças, cansados de tanta saudade. Ainda olhavam. De repente, escurece a estrada, as nuvens negras no céu, a iminência de que tudo viria a desabar. E, no entanto, a sombra não foi capaz de me assustar. Como poderia se a enorme tempestade que se armava lá fora, através do vidro, não era tão grande quanto a que ia dentro de mim? Os pingos sobre o asfalto…Como?,  eu perguntava, como pode no mundo tanta poesia? Meus olhos enchiam. Os pingos sobre minha face. A sua lembrança. A estrada. A tempestade. Mas eu já estava longe. O tempo passara. Eu já estava muito longe. E você, rasgando o vidro, me alcançava.

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Imagem: Divulgação

(6) Realidade

Um dia cheguei em casa. Tudo fora do lugar. Acionei meus gritos, chamei os bombeiros, quis eu mesma, desesperada, apagar o fogo, costurar as cortinas, limpar o chão. Passei assim o dia inteiro. Por fim, tudo parecia ter voltado ao seu lugar e eu fui dormir. Estava muito cansada. No outro dia, um susto! As coisas todas haviam sumido. Não havia mais nada. Casa vazia, quarto vazio, sem cama. Paredes sem quadros, sem paredes. Retratos sem porta retratos, sem retratos. Nada. E eu? Não havia espelhos, eu não podia ver se eu estava ainda ali, ou se já havia desaparecido. Mas como? Eu sentia meu corpo, sentia dor pelo desaparecimento de tudo, medo, raiva, ódio pela mudança, pela indiferença de todas as minhas coisas. Pensei: posso dormir. Quem sabe amanhã tudo voltaria ao normal. Dormi. Parece. Depois, quando acordei, a primeira coisa que vi foi eu mesma. Reaparecera o espelho. Somente o espelho.  Mas eu, era eu? Dormi de novo, esperei e pensei: não importa, tudo há de passar sobre a terra.

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Oswaldo Goeldi, 1937

Oswaldo Goeldi, 1937

(3)

O que há na noite, todo um mundo que passa. Uma reunião de imagens, horas sem som ou graça. Horas com toda gratidão ou nenhum perdão. O que há com a noite, tão misteriosa ela enlaça, sonhos tão viajantes, outras imensidões abraça. Há um tanto de mim em cada noite despedaçada. Arrastada. Os pedaços que procuro aqui, as partes que desminto lá. Ora rio ora choro. Ora te vejo ora te nego. Te rabisco e te venero. Você mesma que foste um dia, você mesma que agora me despreza. O que há com a tua dignidade, noite branda, noite desfeita em colares. Em silêncio acordo exaltada, eis a noite na madrugada. Desconfiada. Imersa em obscuridade. Vejo tudo de mim. Vejo o quanto tenho saudade.

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“Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava uma risada – da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama. Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço – grande e saliente. […] Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem. (p. 10)

Charles Bukowski, A mulher mais linda da cidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012

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