Foto de Graciela Iturbide
Sentada diante do espelho, ela o olhava. Maravilhava-se aos poucos e sutilmente com a sua cor muito branca. Como ele era branco! E como brilhava! Parecia feito de um cetim dos mais finos, iguais aos das moças elegantes da cidade. Admirava seus contornos, o leve decote, as mil e uma pedrinhas que o enfeitavam quase por inteiro da cintura pra cima. Aquelas pedrinhas muito limpas e novas trouxeram de volta na sua lembrança outras pedrinhas, sujas e não tão novas com as quais ela e seus irmãos brincavam nas tardes de sol. Tinha saudade, mas não muita. Estava bastante animada e ansiosa para se prender a sentimentos melancólicos. Continuava mirando-o por meio do reflexo desenhado no espelho. Notou a delicadeza da costura de cada renda que cobria seus braços, a harmonia de cada detalhe, ele parecia divino de tão belo, solene quase.
Era ele o seu vestido de casamento. Era ela a sua imagem aparentemente ausente de qualquer tormento. Do vestido voltou-se para seu rosto. Ela estava achando-se bonita naquele dia. Não dotada de uma beleza exuberante e sofisticada como a trazida pelas mulheres da cidade, mas revestida por uma beleza delicada, tímida até, resultado da leve maquiagem que lhe puseram sobre a pele. Apenas um pouco de pó nas faces, um batom da cor da sua pele e uma fina camada de lápis preto na membrana dos olhos bem negros. Ela admirava a sua beleza! Só aquele pente parecia não combinar. Nunca gostara daquele costume. Desde cedo sua avó lhe ensinara que as mulheres mexicanas deveriam usar um pente sobre a cabeça prendendo com ele parte dos cabelos que, por rebeldia natural e primitiva, caiam soltos diante dos olhos. O pente era sinal de que a moça havia sido criada seguindo os costumes dos povos ancestrais e, o que era mais importante, significava que ela mantinha os olhos sempre descobertos para sorver da beleza e da sabedoria do mundo e, ao mesmo tempo, os cabelos bem presos ao redor do pente, porque cabelos soltos ao vento eram sinal de muita liberdade e a avó sempre dissera: liberdade demais, juízo e felicidade de menos.
Mas o pente destoava do belo rosto e do delicado vestido. Apesar de branco parecia não combinar com nada sendo, definitivamente, peça fora do conjunto. Além disso, há tempo as mulheres da cidade já não o usavam. Ele ainda persistia apenas em vilarejos rurais próximos às áreas urbanas e apenas em algumas famílias. Mais um motivo para deixar enfim de usá-lo.
Já ia fazendo um movimento para tirá-lo quando a avó apontou no quarto onde estava e ia avançando em passos bastante lentos devido aos caprichos do tempo, mas ainda firmes e conhecedores do chão. Aproximando-se da neta, ela mirou no espelho seu reflexo mais o dela. Esboçou um sorriso pequeno, mas sincero, e disse. Vai muito bela. A mais bela das noivas de pentes que essa vila daqui já viu. Deixe-me tocar nele pra ver se está quente ou frio. Olha! Mas não é que vai bem quente esse pente. Sinal de que teus pensamentos estão muito agitados, sinal de que estás alegre minha filha, o pente não nega a fervura ou o sofrimento que trazemos aqui dentro – e apontou para a cabeça já tomada pelos cabelos brancos. Agora vai que todo mundo já vem chegando.
Guadalupe assim o fez. Apressou-se na contemplação e se esqueceu do pente, afinal, tantos anos com ele guardando os cabelos e os pensamentos, não há quem não se acostume.
Lá fora o movimento era quase frenético e o dia bastante quente. Guadalupe se impressionou com o número de pessoas que chegavam, com a quantidade de rosas que o irmão buscara em uma fazenda próxima, rosas de todas as cores, cheiros, de todas as formas e contornos. Ela não cabia em si de tanta felicidade. Ai, se eu continuar assim não duvido nada que esse pente derreta de tão fervente que vai minha alma! Enquanto divisava o horizonte da festa, seus olhos brilhavam e procuravam ávidos por Pedro no meio da multidão que já se configurava. Ainda não o vira, decidiu dar uma volta a fim de trocar com ele algumas palavrinhas antes do início da cerimônia.
Foto de Graciela Iturbide
Pedro ela conhecera ainda adolescente. Com uns 14 anos e coração de menina já pulsando e provando das dores e ilusões da vida. Como ele era lindo e como suas palavras eram doces, suas mãos quentes, seu coração próximo. Ela o amava profundamente. No começo tudo fora um pouco difícil. A família de Pedro era rica, uma das mais tradicionais da cidade de Alcobaça, a cidade próxima do lugar onde Guadalupe vivia, e a família dela, em contrapartida, havia sido empobrecida pela última guerra com os vizinhos ricos do norte. Alcobaça e algumas outras cidades do interior do México eram vítimas de constante exploração pelos estados americanos que faziam fronteira com o México. Os americanos queriam explorar as mulheres e o trabalho dos homens instalando as suas fábricas “maquiladoras” na região. Algumas cidades vizinhas que não reagiram nem opuseram resistência à dominação viram as suas mulheres serem exploradas de todas as formas, seus homens serem reduzidos ao mínimo de sua já mínima dignidade e sua terra ser exaurida até a mais última grama de ouro, até o derradeiro pó de riqueza natural e mineral. Em Alcobaça, eles fizeram diferente. Levantaram-se contra a dominação como se estivessem levantando-se contra um gênio do mal. Travou-se uma perigosa guerra, a liberdade foi prevervada à custa de algumas vidas que espontaneamente deram-se em nome dela. Os pais de Guadalupe morreram na guerra e restaram apenas ela, seus dois irmãos e sua avó que lhe ensinara quase tudo da vida e pouca coisa da morte.
Mas as diferenças entre Guadalupe e Pedro foram superadas pelo amor que ele tinha por ela. Nada parecia detê-lo e quanto mais diziam que não, mais sua vontade sussurrava que sim. E tamanho amor chegou de fato ao casamento. Aí estavam eles. Aí eles estavam.
Tocaram-se belas e alegres músicas, distribuíram-se largos e expressivos sorrisos, trocaram-se alguns interessados olhares, a festa rendeu ótimas felicidades embaraçadas e preparou o terreno para que, como aquela, outras se repetissem indefinidamente, amorosamente.
Guadalupe não coube dentro de si de tanta felicidade. Pedro acreditava possuí-la de fato. Não havia mais possibilidade de perda, nem para ele, tampouco para ela. Os irmãos de Guadalupe sentiram-se orgulhosos e a avó, bem, a avó continuava olhando desconfiada como sempre. Esboçando sorrisos sinceros, mas atentando para alguns alheios mistérios. Seguia ouvindo muito, falando pouco, era uma só ela e seu pente, pois ela ainda o usava e pretendia usá-lo por toda a vida que ainda lhe estava guardada.
Os anos se passaram. O tempo cumpriu seu movimento. O suceder das noites e dos dias, o mudar das estações, o adquirir de marcas, o enfraquecimento de ilusões. O tempo misterioso de que tantos falam, do qual todo mundo sabe alguma coisa, mas do qual ninguém entende razões, caprichos e paixões. O tempo passou e foi desnudando destinos, assim como o pente das mulheres de Alcobaça desnudava seus rostos.
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