Na vertiginosa paisagem da cidade de São Paulo, os prédios saíam da terra grandes e iluminados. Dividiam a cena com os fios dos postes, as paredes pichadas, o céu meio esfumaçado, denso, fechado, as ruas lotadas com carros que iam e vinham frenéticos, apertados. Pessoas corriam atravessando a rua, comprando alguma coisa, olhando um endereço, saltando um monte de lixo esparramado ou uma pessoa jogada na calçada.
Meus olhos iam absorvendo aquela imensa paisagem paulistana, quase que fundindo-se a essa imagem quando desviaram-se para uma mulher que parecia ter saído do lugar mais sujo do mundo. Ela destoava daquela paisagem e era ao mesmo tempo reflexo dela a ponto de uma não conseguir viver sem a outra, de uma sair de dentro da outra.
Ela parou para atravessar a rua e pude ver que seu rosto estava todo salpicado por manchas negras, tipo fuligem ou carvão. Ela dava a impressão de ter saído de uma mina de carvão. Parecia de um corpo grande, bastante corpulento, o que fazia com que ela logo fosse notada. Usava um grande casaco cuja cor original era bege, mas que, naquele momento, estava totalmente invadido pelos tons negros de uma sujeira humana e social.
Os cabelos eram duros e arrepiados, pareciam imobilizados pela enorme quantidade de sujeira que saltava de toda sua aparência quase fantasmagórica. Olhos negros, pele negra, alma negra.
Nas mãos, ela carregava um enorme saco não sei se de lixo ou do que mais ele poderia ser. Imaginei quantas mil coisas poderiam ter ali dentro, quantos mil sonhos, quantas mil dores, quantas mil frustrações, quantas mil solidões…
Ao contrário do que muitos poderiam dizer, não estava ali simplesmente um retrato da exclusão a vagar pelas ruas sonâmbulas de São Paulo, estava ali um retrato de uma alma, escura e manchada pela sujeira das ruas, o retrato de uma mulher devorada, engolida e comida por uma grande cidade. Havia ali um sentido abandonado e esquecido do público, uma lacuna de brasilidade, mas não parecia existir ali qualquer sombra de anormalidade ou exclusão.
A mulher estava muito bem incluída, chegava a combinar com a paisagem, sustentava a força dos prédios, a fartura de carros, a pressa dos passos. A sua sujeira refletia a sujeira do mundo, a sua alma perdida pertencia ao estado, a sua miséria denunciava o fim do público, a sua sujeira, o capitalismo do privado.
A mulher a andar pelas ruas de São Paulo era nada mais nada menos do que o reflexo do buraco hoje encravado no conceito de público e ela me fez pensar que, seja qual for o próximo presidente deste país, cujo mapa revela uma forma de harpa, o seu grande desafio será construir e dar sentido a uma real esfera pública que está além daquilo que é estatal ou privado, e sim próxima daquilo que é humano, daquilo que nasce da mais remota ilha de luta, coerência e verdade.
As discussões de mídia, comunicação, política, economia ou cultura devem buscar o público, devem ter um verdadeiro projeto que amplie os horizontes, que saia do simples e reducionista maniqueismo do novo e do velho, do falso e do verdadeiro, do injusto e do correto. É preciso pensar para além das oposições e reencontrar um sentido do público há muito perdido pela mídia tradicional, pelos governos, pelos homens, apenas não perdido pela arte.
Retomando um dos velhos ideais da geração modernista de 22, talvez seja este mais do que um momento no qual se luta pela continuidade de uma mudança, talvez seja este o momento no qual a política deve novamente empreender uma tentativa de aproximar-se da arte, pois só no terreno da arte se atinge a real dimensão do público, reduto no qual suspira, doce e móvel, o humano, a mulher de manchas negras e coração na mão que há muito já ficara para trás enquanto o carro ia cortando a imensidão de luzes e tons.