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Posts Tagged ‘Crítica literária’

Ruínas...a perder de vista os sertões...

Ao ler Os Sertões, obra capital da literatura brasileira, a dificuldade imposta pelo autor para vencer suas páginas equivale à dificuldade que existe em compreender a própria história do Brasil por trás de todos os seus disfarçes.

O trabalho jornalístico presente na grande obra euclidiana revela, acima de tudo, que Canudos foi realmente uma síntese do Brasil.

A combinação do misticismo sempre renovado, do maravilhamento que enfeitiça, da religiosidade que amortece, do grotesco que se multiplica à ineficiência do Estado, às suas autoglorificações inócuas, à sua vasta ingenuidade, produziram um dos maiores dramas de nossa história.

Loucos e místicos de um lado, ingênuos e prepotentes de outro. Canudos podia ser qualquer outra coisa, menos uma insurreição monárquica. O governo republicano podia ser qualquer outra coisa, menos justo e democrático. Só se colheram mortes…

“E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas ; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras…” (p. 231 – Volume I)

“Entre nós, de um modo geral, (Canudos) despertou rancores. Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las. Não entendemos a lição eloquente. Na primeira cidade da República, os patriotas satisfizeram-se com o auto de fé de alguns jornais adversos, e o governo começou a agir. Agir era isto – agremiar batalhões”. (p. 88 – Volume II)

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Devolveu-me um certo Dom Quixote de La Mancha o gosto de uma leitura fluente e livre. Livre não dos compromissos da boa literatura, e sim dos percalços da má. Com sua dose de fantasia, o romance combina tanto a crítica à própria literatura, quanto o sabor do que pode existir de melhor nela: as histórias.

Elas saltam sobre o enredo, acumulam-se. O leitor sai de uma para logo entrar em outra, mas, em nenhum momento, perde-se o espírito da obra ou o seu propósito inicial, que vem a ser a crítica às próprias novelas de cavalaria e aos demais gêneros da produção literária de então.

Cervantes recupera assim toda uma tradição literária e, como nas grandes obras, faz viver, ou melhor, reviver, os grandes clássicos. Desde Aristóteles até Homero, desde a Grécia até Roma, desde os mitos até as narrativas de pastoras e princesas. E coloca de fato a literatura como a grande protagonista de sua história, afinal, Dom Quixote não existiria se não fosse por ela.

Sem os romances meticulosamente queimados pelo não menos meticuloso cura do seu vilarejo, o fidalgo da Mancha não teria enlouquecido. Nem se imaginado de repente um cavaleiro andante, enamorado da mais formosa das donzelas, sua Dulcineia do Toboso. Sequer teria por escudeiro um servo tão leal quanto peculiar como o inacreditável Sancho Pança, tampouco seguiria saltando de encantamento a encantamento com seu corajoso cavalo Rocinante.

A loucura perpassa Dom Quixote, mas não se faz como loucura aleatória. A poética de Aristóteles tão requisitada pela obra é aqui empregada e a verossimilhança aproxima o leitor da história, por mais fantástico que seja seu enredo. E reside aí o grande lance dessa eterna grande obra, fazer do fantástico familiar pela preservação da arte.

Particularmente, o livro fez-me lembrar a razão de gostar de literatura, por apreciar ouvir histórias, e também me fez reviver o tempo em que aprendi que literatura não era só história, apesar de sempre o ser.

Mais ainda, Dom Quixote me fez novamente escrever textos assim, levemente críticos, como esse, que há tempos não escrevia por estar mais exercitando a escrita que os comentários da escrita. E a isso também sou grandemente agradecida, como as damas que o eternamente honroso Cavaleiro da Triste Figura ajudou a salvar!

O Impressões aproveita para desejar a todos um Feliz Natal e Ano Novo!

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É em um pequeno vilarejo na costa oriental da Sicília que se passa a história dos Malavoglia que, literalmente, significa um comportamento preguiçoso. O fato é que de preguiçosos os Malavoglia não têm nada e tampouco a vida ou o destino mostraram-se preguiçosos para com eles e sua sorte. A família de homens do mar dá nome ao romance Os Malavoglia, do italiano Giovanni Verga.

Após uma fase inicial na qual os romances de Verga eram carregados de todo sentimentalismo e subjetivismo que predominam na escola romântica, o escritor decidiu se aventurar pela objetividade e pelas descrições do meio e do homem que marcam o realismo na literatura, particularmente o Naturalismo, uma vertente do realismo na qual a influência do meio no comportamento e no caráter do homem é descrita em seus detalhes e particularidades e na qual os hábitos culturais, os costumes, o jeito de falar e de viver de certa comunidade de homens também é exposta ao longo da construção da narrativa.

Em suas duas fases, Verga soube traduzir com qualidade e talento literário as cenas que faziam parte do seu cotidiano mais próximo. O escritor nasceu na Catânia, em 1840, perto da aldeia onde se passa a história dos Malavoglia, portanto, conhecia de perto a vida e os problemas dos moradores do local. Considerado um marco na obra do autor italiano justamente por representar o momento no qual ele rompe com um passado romântico e decide materializar um ambicioso projeto literário de cunho realista, Os Malavoglia entrou para a hitoriografia literária não só como um divisor de águas na obra de Verga, como também no panorama literário italiano e até mundial.

Isso se deve ao fato de que o realismo de Verga possui características muito peculiares que tornam a sua escrita extremamente agradável e sua narrativa bastante fluente e sonora. Ao contrário de outros autores símbolos do realismo, Verga não se demora em demasia nas descrições do lugar, tampouco na investigação psicológica dos personagens. Ele faz um e outro, mas os insere na narrativa de forma natural e nem sempre contínua. É como se a alma dos personagens fosse sendo construída até a última linha do romance e como se as ruas e casas do lugar fossem também elas ganhando sua própria vida, seu próprio ar ao longo dos fatos contados.

Em Os Malavoglia são os diálogos os grandes protagonistas. Eles ocupam quase toda a extensão da narrativa, sendo interrompidos apenas por uma ou outra descrição ou fala do narrador que vai orientando o enredo e são eles que sustentam a história sendo muitas vezes introduzidos naturalmente, sem os tradicionais dois pontos e travessão, refletindo os costumes e a cultura do local, seja pelo conteúdo das conversas, seja pela linguagem utilizada.

Giovanni Verga

Tudo se passa em uma vila de pescadores, onde todos sabem da vida de todo mundo e onde a fofoca e os ditados e provérbios populares têm lugar de destaque. A chamada frase feita é responsável por pontuar cada passo da história dos Malavoglia e sinaliza uma espécie de sabedoria e conhecimento acumulado ao longo de gerações. São os tais buracos cavados por gerações de formiga, como chamava o poeta Baudelaire.

Em meio aos provérbios e frases feitas, ninguém escapa dos falatórios das comadres, da conversa de janela e de porta em porta, desde as moças casadouras até o padre egoísta e os funcionários corruptos da prefeitura. Os personagens  são um capítulo à parte. Há um boticário republicano, um soldado que vive atrás de um rabo de saia, aqueles que só querem saber de beber nas tavernas e passar o dia ocupados em não fazer nada e os que enfrentam as incertezas do mar e as jogadas do destino.

Verga acerta em diversos aspectos e o romance atinge em diferentes momentos uma força e beleza literária indiscutível, seja na expressão e forma da linguagem, seja no contéudo. A história dos Malavoglia e a construção dos personagens que fazem parte da família são feitas de forma natural e bastante próxima da realidade, sem as idealizações ou rodeios sentimentais do romantismo. Basicamente, a família sofre com uma série de desgraças que vão se abatendo sobre ela. São mortes, dívidas, solidão, abandono, falações, doenças e acontecimentos que testam a força daqueles homens do mar e daquelas mulheres do tear e das coisas da casa.

O interessante é perceber como a vida na pequena vila é uma teia de relações, muito bem costurada por Verga, onde tudo está relacionado e onde a força do homem chega até certo ponto, mas depois, a voz que fala mais alto é a do destino. A sutileza com que o escritor vai distribuindo as falas das personagens impressiona no mesmo movimento em que também emociona.Os dramas e sofrimentos dos Malavoglia aos poucos confundem-se também com nossos dramas e sofrimentos, assistismos o tempo passar como eles, relembramos os momentos em que nos despedimos de alguém que jamais voltaríamos a ver, reencontramos nossas saudades, medos, nossa própria solidão e, principalmente, somos convidados a enfrentar as irremediáveis coisas dessa vida e a perceber que em todos os momentos ou circunstâncias é apenas uma coisa que move todos os homens: o desejo.

A família do patrão ‘Ntoni, o avô, último dos Malavoglia, que dizia que “para manejar o remo é preciso que os cinco dedos se ajudem uns aos outros”, luta, sofre e vive alguns momentos de felicidade, da primeira até a última página, apenas porque busca o seu sonho e este não é sinônimo de felicidade completa e eterna, mas apenas de uma conquista imediata, que alivia alguns problemas e logo conduz a outra luta, luta que sempre compensa, segundo o avô, pois demonstra coragem e dignidade, mesmo diante da fome, da pobreza, dos piores sofrimentos.

O romance de Verga vale pela relevância histórica e social, pelo teor antropológico de investigação dos modos de vida e hábitos mais íntimos de uma comunidade, pela belíssima linguagem e pela naturalidade com que o leitor é apresentado às diversas fases da vida pelas falas e pelos silêncios dos personagens. Um romance que soube aliar o melhor do realismo a uma prosa divertida, popular, que faz pensar, rir e chorar das ironias, dos ridículos, dos sentidos que eternamente seguiremos a procurar para esta nossa doce e misteriosa vida que apenas a literatura e as demais artes ajudam a iluminar!

Entretanto, o patrão ‘Ntoni tinha partido para uma longa viagem, mais longe do que Triste ou Alexandria do Egito, da qual não se volta mais; e quando seu nome vinha à baila, enquando descansavam, fazendo a conta da semana e planos para o futuro, à sombra da nespereira e com as tigelas entre os joelhos, a conversa morria de repente, porque a todos parecia ter o pobre velho diante dos olhos, como o tinham visto da última vez que foram encontrá-lo naquele quarto enorme, de camas enfileiradas, que era preciso procurar para achá-lo, e onde o avÔ os esperava como uma alma do pugatório, de olhos pregados à porta, embora já não enxergasse quase, e os tocava para assegurar-se de que eram eles, e daí não dizia mais nada, enquando dava para ver em sua cara que tinha muita coisa a dizer, e partia o coração com aquela pena que se lia em seu rosto e não podia dizer. Quando lhe contaram, então, que tinham resgatado a casa da nespereira e queriam levá-lo de volta a Trezza, respondeu que sim, que sim, com os olhos, que brilhavam de novo, e quase armava um sorriso na boca, o sorriso de quem não sorri mais, ou que sorri pela última vez, e que fica cravado no coração da gente como uma faca. Assim aconteceu aos Malavoglia, quando voltaram na segunda-feira, com a carroça do compadre Alfio, para apanhar o avô e não o encontraram mais.

Verga, Os Malavoglia,  p. 300

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Um filósofo sonhador de palavras, apaixonado por poesia!

Estudar uma obra, comentar um texto, é, essencialmente, fazer um trabalho de leitura, submeter-se às injunções do texto, deixar-se invadir pela repercussão que ele provoca. Trata-se de ler e de fazer ler – como Éluard, decerto seu poeta preferido, sonhava em “fazer ver” – em uma alegria renovada. As citações são, pois, numerosas, os comentários admirativos ou “sonhadores”, o estilo em geral lírico, o procedimento raramente analítico.
(Daniel Bergez, em A crítica temática, sobre Bachelard)

“Eu era como um barco correndo na água fechada
Como um morto só possuía um único elemento”.
(versos de Éluard)
“A água fechada toma a morte em seu seio. A água torna a morte elementar. A água morre com a morte em sua substância. A água é então um elemento substancial. Não se pode ir mais longe no desespero. Para certas almas, a água é a matéria do desespero.
(Gaston Bachelard, em A água e os sonhos)

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Em Lisístrata, a revolução das mulheres toma forma na melhor sequência de reticências...

Entre as clássicas comédias gregas, há inúmeros exemplos que constituem grandes obras literárias. Lisístrata ou A Greve do Sexo, de Aristófanes é uma delas. A leitura desta comédia é simplesmente deliciosa, não só pelo tema central do enredo que é próximo e essencial a todos os seres humanos, como também e, principalmente, pela qualidade e originalidade na construção das cenas, dos personagens e das situações por meio de um criativo e minucioso trabalho de linguagem.

Basicamente a história da peça é a seguinte. Na Grécia, atenienses e espartanos travam uma guerra fratricida que enfraquece o povo grego de forma geral e torna o país mais vulnerável a conquistas estrangeiras.

As mulheres que têm seus maridos longe de casa, lutando em um guerra na qual a maioria das pessoas não vê sentido e considera mais prejudicial do que benéfica, decidem se reunir e fazer algo para que os homens desistam da guerra e votem a favor da paz. Para tanto, Lisístrata, uma mulher ateniense, convoca uma reunião de mulheres de diversas regiões da Grécia e diz que um meio eficiente que elas têm de ter os seus maridos de volta e de ver finda a guerra é fazendo uma greve de sexo.

No início, a ideia é vista com desconfiança, mas depois as mulheres decidem colocá-la em prática em nome da paz e de algo além dela. No fim, os homens desesperados e totalmente à mercê dos próprios desejos decidem votar pelo acordo de paz atraídos pela beleza e graça da conciliação, personificada na peça por uma mulher atraente e bela. Representar a conciliação por meio de uma bela mulher, ou seja, aquilo que os homens mais desejavam de corpo e alma naquele momento, não deixa de ser uma jogada literária que compreende uma ambiguidade interessante e, ao mesmo tempo, inteligente. A paz enfim é selada e as mulheres voltam aos seus maridos e estes às suas mulheres, agora mais cuidadosos quanto a cometer os mesmos erros do passado que os deixaram sem a …. PAZ.

As reticências antes de alguma palavra que vem em seguida é uma construção linguística constante neste texto. Ela aparece de forma sempre irônica, extremamente divertida e engraçada, com uma textura fortemente sensual, mostrando que por trás de um motivo aparentemente normal, esconde-se outro humanamente natural, mas moralmente desconcertante. Nesses momentos do texto, o leitor pode pensar exatamente aquilo que os personagens pensaram, é como um fluxo de consciência aberto e, ao mesmo tempo, velado, dá-se a entender, mas nada é dito de fato.

Este é sem dúvida um dos grandes acertos da peça. Fora isso, todo o texto é extremamente divertido, as falas são originais, as expressões fortes e elevadas, o que demonstra também uma certa influência de aspectos próprios da tragédia, as situações são particularmente hilárias e há uma leveza que reside na própria construção das cenas, nos diálogos, no fluir sonoro da narrativa.

No entanto, o mais interessante em Lisístrata é como a peça mostra o homem escravo de seus desejos, o homem facilmente manipulável, e aqui não entram apenas os homens que desistiram da guerra porque não conseguiam mais controlar o próprio desejo sexual, como também as mulheres que em vários momentos da empreitada quase desistiram não fosse o empenho e a convicção de Lisístrata em manter as mulheres firmes e seguras de si mesmas.

O fato é que as mulheres acabam por se revelar mais fortes diante do homem, o poder feminino fica evidente podendo acabar com uma guerra ou mudar o curso de muitos acontecimentos, pra isso a mulher precisa apenas saber controlar o seu desejo de modo a levar à loucura um outro exatamente pela privação desse mesmo desejo que se mostra menos pungente na mulher do que no homem.

Se pensarmos de forma mais ampla, a peça reflete também sobre a precaridade do ser humano diante do desejo, ela expõe como de fato nos tornamos escravos dele e somos levados a situações ridículas apenas na ânsia de satisfazê-lo. Em Lisístrata, assim como nas melhores obras da literatura grega, há muito de humano, muito de essencial, de íntimo, de delírio, de comportamental, há a universalidade do humano que na era moderna passaria a se confundir com o histórico e vice-versa.

Aristófanes se faz nesta peça um escritor visionário e habilidoso em cada palavra dita e pensada, em cada passagem vivida ou subentendida, em cada desejo sincero ou velado. E para fazer das minhas últimas palavras as palavras de Lisístrata “mas se o doce amor encher nosso corpo de desejos e deixar os homens com um entusiasmo de endurecer o … coração, creio que merecemos as maiores recompensas”.

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Primo Levi, escritor italiano, cujo corpo físico sobreviveu a Auschwitz, mas talvez a alma não.

No livro É isto um homem?, publicado em 1947, o escritor italiano Primo Levi narra os momentos que passou em Auschwitz, campo de concentração nazista, como prisioneiro judeu. A violência surge como um dos grandes temas do livro, manifestando-se de todas as formas possíveis, inclusive das mais degradantes e inimagináveis. A violência transita nas entrelinhas da narrativa como algo constante e, acima de tudo, normal. Levi disseca a violência humana e mostra como essa de fato passou por um processo de banalização, como diz a filósofa e pensadora política Hannah Arendt.

O relato de Levi é pungente, forte, em alguns momentos dilacerador e perpassado por um horror quase inacreditável. O título do livro “É isto um homem” se justifica ao longo de toda narrativa na qual o autor parece se perguntar a todo momento se tanto os prisioneiros do campo de concentração quanto os carrascos, chamados de “kapos”, são de fato homens, haja vista o alto grau de degeneração da mais profunda e intrínseca humanidade presente em cada um deles. O carrasco perde grande parte da sua humanidade mesmo antes dos prisioneiros judeus, deficientes, homossexuais chegarem aos campos de concentração.

Como mostra Levi, eles já haviam sido destituídos de toda sua humanidade e respeito para com o outro à medida em que assimilaram as ideias nazistas, o espírito de ódio contra seres humanos considerados inferiores e, por isso, merecedores não só de seu aniquilamento físico, como também da desintegração de sua própria alma. Já no caso dos prisioneiros, a rotina do campo de concentração, a fome quase constante, o frio, os maus-tratos, as humilhações de toda ordem, a incerteza quanto à própria sobrevivência a cada dia que começava, tudo isso ia aos poucos destituindo-os de alma, de qualquer espécie de espírito ou identidade. Os prisioneiros sequer tinham nomes, eram apenas um número tatuado nos braços. Sequer tinham história, a dor e o constante sofrimento foram capazes de fazer com que um pedaço de cada um deles perecesse nos campos de concentração.

Diante de tudo isso, a resposta para a pergunta de Levi pode ser sim afirmativa. De fato, era aquilo um homem. Basta pensar no fato de que o ser humano é uma espécie tão estranha e contraditória, tão falha e, ao mesmo tempo, tão exata. O homem é sim capaz de cometer atos de desumanização contra ele mesmo e contra o outro, é capaz de aniquilar sua própria alma, afinal, nenhuma natureza se mostrou ao longo da história tão precária quanto a natureza humana.

Desse ponto de vista, pode-se entender a obra de Levi, além de todo teor de violência que ela traz de forma implícita em cada momento da narrativa, em cada descrição assustadora e revoltante, como uma narrativa que além do terreno da violência avança para as raias da antropologia à medida em que discute o homem e seu caráter de humanidade e coloca em evidência a relação desse homem com o outro. O holocausto é o maior exemplo que se tem ao longo da história de ódio e preconceito exacerbado em relação ao outro, é o inverso de qualquer relação de alteridade, é uma situação de exceção onde não há qualquer sobra de respeito ou consciência, o que existe é apenas uma doutrina e uma ideia na qual os homens acreditam cegamente, doutrina que conduz à banalização da violência, ao aniquilamento de almas, ao empilhamento surreal de corpos físicos.

Durante a narrativa emocionada e pungente de Levi, fica também evidente a diferença que existe entre a destruição física e a destruição do caráter humano, daquilo que reside nas regiões mais internas, daquilo que se parece com lembranças, com sonhos, desejos. A pior morte no campo de concentração não era aquela que espremia e sufocava os prisioneiros nas câmaras de gás e sim aquela que ia tirando aos poucos cada pedaço de sua alma, cada ponta da sua esperança, a morte que ia apagando aos poucos a luz que ainda restava em cada olhar, deixando-os apenas opacos e cinzas.

Diante de tudo isso, os prisioneiros morriam antes da morte física propriamente dita. Depois de um tempo era só o corpo que vagava sem rumo, esmagado de fome, exposto e humilhado diante de si mesmo, dentro desse corpo já não havia mais nada. Se ele, por um lance de sorte ou por um olhar piedoso do destino, escapasse ileso, a alma com certeza não voltaria, esta já havia ficado pra trás. Isso explica porque muitos prisioneiros que sobreviveram aos campos de concentração dizem que a sensação que fica é a de que algo deles, algo de muito íntimo e profundo, foi perdido, deixando em seu lugar um vazio, uma sensação de angústia, um olhar sem o brilho de antes que apenas deixa transparecer cansaço e solidão.

A obra de Levi é forte o bastante para mostrar toda redução daquela matéria incorpórea e abstrata que faz do homem humano, tem um tom de denúncia e em alguns momentos um caráter até surreal. Algumas cenas parecem frutos da mais impossível ficção, verdadeiras obras de crueldade e loucura, histeria, neurose ou qualquer outra doença mental. As descrições são exatas e pormenorizadas, trazem uma riqueza de detalhes que vai esmagando pouco a pouco quem lê em sua própria visão egoísta e superficial do mundo e das coisas. De repente, as ações narradas em meio às descrições acordam quem lê para um estado de absurdo, para um surrealismo que deixa de ser devaneio e vertigem quando se mostra real no sutil caminhar da história.

A linguagem utilizada por Levi, como já dito, é bastante forte e em alguns momentos seca, o que dá a ideia de aproximação com a realidade dura e de extremo sofrimento do campo de concentração, onde não havia espaço para encantamentos ou elevações, tudo era exato, rígido, pragmático em um contexto no qual o homem esqueceu-se do próprio homem e se esqueceu de si mesmo como homem.

A narrativa é entremeada por ações que envolvem o leitor e, ao mesmo tempo, o perturbam naquilo que há de mais íntimo em cada indivíduo. A força e a contundência da narrativa fazem do livro uma grande obra literária que, apesar de não usar como recurso a ficção, já que os fatos narrados existiram de fato, parte de uma realidade tão absurda e esmagadora que excede a mais inimaginável das ficções. Com um forte tom histórico e também antropológico, o livro não é apenas um documento histórico, é mais do que isso, é uma obra literária de fato, como dito, que inclui em sua abordagem elementos históricos e antropológicos, mas que tem como objetivo principal contar uma história real revestida pelos véus da literatura, seja no que diz respeito à linguagem utilizada, seja no que concerne à construção da própria narrativa.

De qualquer forma, É isto um homem? aparece como uma leitura essencial para que se conheça, a partir de um olhar extremamente atento e minucioso, a realidade de um dos momentos mais terríveis da história mundial e também para que a partir dela se mostre que o homem já produziu grandes obras de violência, fazendo desta última seu reduto e salvação, já levou os ideias trágicos às mais impensadas consequências e já reduziu as possibilidade humanas a menos do que nada, a um grito mudo e desesperado, a uma indiferença louca e fria, tanto do lado de quem morre, quanto do lado de quem mata. É isto homem? reflete acima de tudo sobre o próprio homem, sobre sua incoerente e frágil existência, sobre seu egoísmo e soberba, sobre sua miséria e humilhação, é um reflexo bastante pessimista do quanto a alma humana pode apodrecer, restando apenas loucura e dor.

Estamos transformados nos fantasmas que havíamos deslumbrado na noite passada. Então pela primeira vez nos demos conta de que nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a destruição de um homem. Em um instante, com intuição quase profética, a realidade nos é revelada: chegamos ao fundo. Mais fundo que isso não se pode chegar: uma condição humana mais miserável não existe tampouco se pode imaginar. Não temos nada nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos e até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão, e caso nos escutassem, não nos entenderiam. Até mesmo o nome nos tiraram: e se quisermos conservá-lo deveremos encontrar dentro uma força arquitetada de tal maneira que, atrás do nome, algo nosso, algo do que um dia fomos, enfim permaneça.

Pois imaginem agora um homem a quem, além de suas pessoas amadas, roubem-lhe também a casa, os costumes, as roupas, tudo, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à necessidade, vazio de dignidade e de juízo, porque àqueles que perderam tudo ocorre que se perdem a si mesmos […] (Capítulo “En el fondo”).

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Uma tarde, durante um recesso do tribunal, eu estava sentado a essa mesa, tomando café com Panagakos, um fiscal de sursis, um fiador e dois detetives da delegacia de costumes, quando um curioso homenzinho entrou no restaurante. Tinha por volta de 1,62 ou 1,64 de altura e era bastante magro; não devia pesar mais que uns quarenta quilos. Estava com a cabeça descoberta e empinada para o lado, como um pardal. Tinha cabelos compridos e uma barba densa. Traços de sujeira na testa indicavam que a havia coçado com dedos imundos. Ele usava um capote vários tamanhos maior, quase roçando o chão. Trazia as mãos juntas, para aquecê-las – fazia muito frio -, e as mangas do capote as cobriam, formando uma espécie de regalo. Apesar da barba, o homem tinha algo de infantil e de perdido, com aquele capote grande demais, a cabeça descoberta e o rosto sujo: um menino que subira ao sótão com outras crianças para experimentar roupas de adulto, se cansara da brincadeira e caíra fora (MITCHELL, 2003, p. 43).

Joe Gould
Entre as grandes obras-primas do Jornalismo Literário, uma delas não pode deixar de ser lembrada, trata-se de O Segredo de Joe Gould (2003), do escritor norte-americano Joseph Mitchell. O livro é composto por dois perfis que têm como personagem um mesmo homem, ou como Mitchell prefere chamar, uma mesma alma perdida: Joe Ferdinand Gould. Os dois textos foram publicados na revista The New Yorker, na qual Mitchell trabalhou por grande parte da sua vida, o primeiro em 1942 e o segundo em 1964. Mitchell, a exemplo de jornalistas americanos que posteriormente se aventuraram nos ideias do New Journalism e se propuseram a fazer um jornalismo livre das amarras e dos limites formais e temporais presentes no cotidiano das redações, produziu textos simplesmente lindos e emocionantes, associando seu nome ao mais alto padrão de texto jornalístico que avançou sobre as margens da literatura. Ele tinha um dom natural, uma sensibilidade própria em voltar-se para os anônimos do cotidiano, era disso que Mitchell gostava, era sobre isso que sabia escrever como ninguém. Como diz a frase retirada do obituário de Joseph Mitchell no New York Times, ele gostava de sonhadores e bêbados,e, para ele, as pessoas eram sempre tão grandes quanto seus sonhos. Diante dessa característica, Mitchell evitava os lugares comuns do jornalismo como por exemplo as celebridades, os poderosos, as pessoas em evidência. Ele gostava dos que viviam à sombra, estes o atraíam para serem revelados delicadamente pelo estilo discreto de Mitchell. Quando diziam que ele se dedicava a personagens pequenos, ele costumava responder: “Eles são tão grandes quanto você, seja você quem for”. Tamanha sensibilidade e beleza de alma só poderia se refletir em um texto sonoro, regado por ideias belíssimas e originais, histórias e enredos inspiradores, atraentes, por uma linguagem trabalhada, embora não em excesso. Como já foi dito, Mitchell era, acima de tudo, um jornalista de estilo discreto que se esgueirava pelas ruas, camuflado pela escuridão em busca das luzes invisíveis da vida. Aos seus olhos, os personagens de uma grande cidade deixavam de ser mudos e invisíveis aos olhos e ouvidos da multidão diluída e uniforme e passavam a iluminar o mundo com a luz de sua loucura, com o lírio do seu olhar.
O personagem de Joseph Mitchell em O Segredo de Joe Gould é um boêmio que vive pelas ruas do bairro nova-iorquino Greenwich Village carregado de lápis, cadernos, guimbas de cigarro e piolhos. Dentre todos os seus personagens, Gould foi aquele que Mitchell mais escutou. Formado em Harvard, Gould é um literato maltrapilho que sabe falar a língua das gaivotas e traduz alguns poemas e textos para essa sua lingua mágica e doce. Daí, a inspiração para o título do primeiro perfil de Joe Gould, intitulado “Professor Gaivota”. Além de traduzir clássicos da poesia em língua inglesa para a lingua das gaivotas, Joe Gould também estava escrevendo uma obra monumental, eram muitos e muitos cadernos preenchidos que formariam a obra de toda uma vida chamada Uma história oral de nosso tempo. Essa história seria baseada apenas naquilo que as pessoas da sua época dizia. Gould decidira escutar as pessoas nas ruas, nos bares, banheiros, à noite, durante o dia, atrás das portas, enfim, escutá-las. Em outras palavras, Mitchell encontrou em Joe Gould um homem tremendamente parecido com ele próprio, que gostava de escutar as pessoas e achava que a história de uma nação estava justamente naquilo que as pessoas diziam, não nos parlamentos ou nas guerras. Joe Gould era seu personagem perfeito.
O interessante é perceber como Mitchell soube olhar bem para Joe Gould, ele enxergou o homem, o escritor, o falante da língua das gaivotas por trás do boêmio. Ele viu uma profundidade psicológica naquele indivíduo, uma cor diferente na sua alma, um olhar mais longo, reticente e profundo, ele viu uma história que valeria a pena ser contada, e esse é o segredo de um bom perfil. Se a história de vida não for boa o perfil simplesmente não se sustenta, mesmo com uma belíssima linguagem, tocantes metáforas, imersão total na realidade, múltiplos pontos de vista na narrativa e outros elementos do jornalismo literário, nada disso se faz suficiente quando a história não é boa o suficiente para envolver o leitor de modo que este se veja de alguma forma refletido naquelas páginas. Da mesma forma, de nada adianta uma bela história se não se sabe contá-la. Joseph Mitchell é fascinante porque reúne as duas características essenciais do jornalismo literário, ele sabe olhar para a cena do mundo e sabe escrever de forma rica e humanizada. Não há outra alternativa, sequer outro segredo, basta saber ver o que os outros não viram, saber contar com as palavras que outros jamais usariam, jornalismo literário também é arte, ele empresta a arte da literatura e quando se cai no campo da arte tudo é uma questão de estilo.
Mitchell tem estilo, sabe impressionar com a sua escrita clara, diáfana, direta, correta. Além disso, ele se utiliza da imersão. É evidente o seu mergulho profundo na alma de Joe Gould buscando apreender aquilo que talvez nem mesmo Joe Gould sabe que tem ou sente. Alem da imersão e da linguagem clara, precisa, discreta, Joseph Mitchell deixa marcado em tudo aquilo que escreve o seu estilo, a sua voz autoral ao narrar as sombras da realidade, jogando nelas uma luz quase sublime.

Joseph Mitchell e Joe Gould no filme Joe Gould’s Secret, de Tucci e Howard A. Rodman

Basicamente, o estilo de Mitchell que perpassa ambos os perfis de Joe Gould, é preciso. Como o físico e matemático britânico Maxwell escreveu “seu texto lembra o som que fazem os carpinteiros quando estão construindo uma casa”. Não há hesitação, pregos tortos, acima de tudo, nada sobra, tudo é exato, não há sílabas desperdiçadas. Ele não era um escritor de excessos, era leve, o texto pairava acima das páginas e assim Mitchell desenvolveu formas próprias para tratar histórias da vida real com técnicas de ficção. A observação minuciosa do mundo material fazia parte do seu método, era uma estratégia literária e, ao mesmo tempo, uma forma de atingir coisas intangíveis, internas (emoções, sentimentos…) através de coisas palpáveis e externas (a estante de livros desarrumada, o relógio gasto, as roupas amontoadas…). Faz parte do estilo de Mitchell uma ponta de humor que transparece em algumas situações de O Segredo de Joe Gould, ainda que este humor seja melancólico, negro, daqueles que reduzem a quase nada as grandes pretensões da vida. Outro recurso que ele utiliza em O Segredo de Joe Gould é a precisão de dados e informações, principalmente, aquelas que se referem ao seu personagem. De Joe Gould ele tenta pesquisar tudo, reunir os números, as horas, as quantidades que ajudam a definir aquela alma perdida e mostra todos esses dados ao leitor de forma que este último se sente impressionado e, ao mesmo tempo, satisfeito por um efeito de realidade, um gesto irreversível que faz da realidade algo que simplesmente se impõe e completa as pessoas, no mesmo movimento que as incompleta. Mas neste ponto Mitchell entra com sentimentos, com a alma, com a solidão, talvez seja esta última o grande tema do livro: a solidão de um homem inteligente e puro. A sensação ao saber mais sobre ele é a de que todas as pessoas do mundo de repente tornam-se tão imbecis, tão medíocres, perto de seu coração tão puro, suave e sábio. Mitchell oferece ao leitor o real e o sonho, o que se tem, e o que se deseja, o que isola e o que reparte…

Joseph Mitchell


Em tudo isso, ele se faz humano, a humanização é constante em
O Segredo de Joe Gould e não poderia deixar de ser. Um perfil que não é humano não é um perfil, mesmo que o personagem não tenha sequer uma ponta de humanidade, o retrato de uma vida humana deve ser humano, porque sempre há pontas e névoas de humanidade por trás de cada alma suspensa, basta deixar que ela sutilmente brote. O que sempre interessou para ele foi a descrição do que ia dentro das pessoas por isso seus artigos são verdadeiros perfis psicológicos. João Moreira Salles, em belo e completo posfácio de uma das edições de O Segredo de Joe Gould, diz que ele prefere o mergulho vertical as prazeres horizontais.
Joseph Mitchell era realmente um escritor especial, entre suas grandes características, lembradas pelo cineasta João Moreira Salles, estavam a lentidão com que escrevia, o seu peculiar senso de humor, sua tristeza inata, sua grande cortesia, o enigma literário que cerca os últimos trinta anos de sua vida. Acima de tudo, ele era um homem que escutava, suas obras sempre são resultados de escutas atentas e constantes em um processo onde o que pode parecer banal, aos olhos dele, transforma-se em algo extraordinário. Nas entrevistas, ele era apenas um curioso que gostava de sentir o cheiro e provar o sabor do espontâneo. Mitchell dizia: “Acredito que, do ponto de vista da conversa, as pessoas mais interessantes são homens reunidos num bar, jogando conversa fora para combater a solidão”. Na cidade grande, ao contrário do que muitos buscavam, Mitchell tentava encontrar a permanência, as coisas que sobreviviam à crueldade do passar do tempo e assim as preservava. Pode-se dizer, portanto, que a memória é o elemento essencial de sua obra, ele escrevia para que as coisas não morressem, não fossem esquecidas, já que, como dizem os gregos, é no esquecimento que a morte cumpre plenamente a sua promessa.
O jornalismo literário não seria o mesmo sem as letras de Joseph Mitchell, sem a sua dedicação em aguçar a consciência do mundo, um grande escritor, com um grande personagem, antes de qualquer outra palavra a mais ou a menos, um escritor da alma…

E em nossa Noite de Poesia da Natureza ele implorou para declamar uns versos de seu poema ‘A gaivota’. Dei-lhe permissão, e ele saltou da cadeira e começou a sacudir os braços, a pular e a gritar: ‘Scriiic! Scriiic! Scriiic! Foi desconcertante. Somos poetas sérios e não aprovamos esse tipo de comportamento”. No verão de 1942, Gould protestou diante da exposição do Raven, pendurada na cerca de uma quadra de tênis da Washingto Square Sul. Numa das mãos segurava seu portfólio e na outra um cartaz em que escrevera: “JOSEPH FERDINAND GOULD, EXÍMIO POETA DE POETVILLE, REFUGIADO DOS RAVENS. POETAS DO MUNDO, INFLAMEM-SE! VOCÊS NÃO TÊM NADA A PERDER, ALÉM DO MIOLO!” Ao pavonear-se de um lado para o outro, de quando em quando dava um salto e perguntava aos transeuntes: “Quer saber o que Joe Gould pensa do mundo e de tudo que existe nele? Scriiic! Scriiic! Scriiic!” (MITCHELL, 2003, p. 32).

Joe Gould

“Encontrei uma palavra que resume meu modo de ser […]: ‘ambissinistro’, canhoto das duas mãos”.

“Sofro de delírio de grandeza. Acho que sou Joe Gould”.

Joe Gould sobre si mesmo

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Eça de Queirós
E que falem as sutis e emocionadas descrições, o olhar lançado sobre a alma, a alma lançada sob os olhares atentos de quem deita o pensamento sob algumas páginas minuciosamente escritas. E que falem as discussões políticas, as ambições civilizatórias, os sonhos sublimes, a filosofia purificadora, a busca por menos oratória e mais ideia, a vontade de ser livre voando nas asas do conhecimento. E que falem os versos da natureza, a boca do sagrado, os lírios dos passos, a imagem da perfeição gratuita e delicadamente graciosa. E que fale o amor intenso, inexplicável, a dor urgente, o horror irreparável, o êxtase dos corações verdadeiramente apaixonados. E que fale o destino, sua maliciosa rede a beijar os corpos que nela irremediavelmente se enroscam. E que por fim a prosa se faça muda, a poesia absurda, o olhar esplêndido…

Eça de Queirós, escritor português, autor de romances como O crime do Padre Amaro, A Relíquia, O Primo Basílio, dentre outros, em um de seus mais conhecidos romances, Os Maias (1888), constrói uma obra diante da qual todas as outras palavras ficam estupidamente pequenas, tal a grandiosidade e lapidação esmerada de cada frase que ele tatua sobre o papel. Mestre e símbolo do realismo português, o escritor leva tal literatura realista às últimas e extraordinárias consequências quando faz o leitor divagar e desmaiar docemente diante de cenas inspiradas na realidade, tradutoras esmeradas da realidade, mas que a transcendem à medida que se fazem emprestadas do divino, do ideal, do destino. Se o realismo pretende descrever a realidade tal como ela é, fazendo-o de maneira sistemática e absorvente, Eça de Queirós não só descreve essa realidade, mas também vai além dela, inspirando-a com a sua forma de olhar e com a sua forma de contar. As descrições, como não poderiam deixar de sê-lo quando se fala em um escritor realista, são constantes no romance, perpassando-o da primeira à última página e desenhadas, quase esculpidas com um mármore muito fino, bastante delicado e majestosamente límpido. A linguagem por ele utilizada se faz absolutamente diáfana, lírica, intensa, marcando um estilo meticuloso e denso, em que a prosa bebe da poesia e a poesia ilumina a prosa. É literariamente lindo!

Complemento o estilo denso, descritivo e a linguagem eternamente a desabrochar, o enredo e os fatos que compõem a narrativa de Os Maias são por si só um atrativo incrível. A história gira em torno de uma tradicional e rica família portuguesa, cujos personagens principais são o avô, Afonso da Maia, rígido quanto aos princípios, de uma ternura quase pueril e, como é no livro às vezes descrito, semelhante a um mármore branco e fino. O filho de Afonso, Pedro da Maia, homem ardente e apaixonado, cheio de impulsos generosos que se mata depois de ser abandonado pela esposa, Maria. Do casamento de Pedro com Maria nascem dois filhos, Carlos e Maria Eduarda, separados ainda nos primeiros anos da infância quando Maria, ao fugir, leva consigo a filha ainda pequena. Dada como morta, Maria Eduarda é, com o passar dos anos, esquecida, até que o destino a coloca, doce e suavemente, cravada no olhar e no seio do coração apaixonado e sonhador de Carlos. Os dois se apaixonam e se entregam a uma paixão incontrolável, indomável, maior que a própria alma, destas que não acontecem duas vezes na vida de uma mesma pessoa. Como diz Eça de Queirós, Afonso da Maia se vê assim diante de “um implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto”. Como já dizia Tolstói em Anna Karienina , “As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Esta, que é uma das aberturas literárias mais famosas da literatura russa, se aplica perfeitamente à história da família Maia. Estes são felizes e nisto se parecem com tantas outras famílias ricas e tradicionais, mas são surpreendidos pela malícia reta e grave do destino, por seu incontornável sortilégio, por aquilo diante do que os homens tornam-se de repente pálidos e mudos. Horrorizados, violentados, roubados de si mesmos, suspensos em relação à própria alma. Nos sofrimentos, a família Maia tem também a sua beleza, a sua essência, a sua arte, assim como tantas outras famílias que sofrem cada uma à sua maneira, respondendo ao seu destino. De todo, as desgraças não descem em todos os lugares, quem saberá as regras e normas do destino? Talvez elas escolham os mais fortes, os mais essencialmente originais ou talvez sejam apenas capricho aleatório, ou castigo planejado, talvez…

Na literatura são muitos os “talvez”, mas na boa literatura são muitas as certezas que produzem glórias. Em Os Maias , o que seria uma simples e novelística historieta de amor entre um homem e uma mulher que, mordidos pelo destino, se descobrem irmãos e em razão da evidência incestuosa se separam feridos e desintegrados de corpo e de alma, vai muito além disso, já que a belíssima e trágica história de amor entre Carlos e Maria Eduarda é entremeada por elevadíssimas discussões políticas, filosóficas, econômicas, sociais e artísticas. Eça de Queirós faz uma análise em seu romance da decadente burguesia portuguesa, a expõe no que esta tem de mais mesquinho e medíocre e, ao mesmo tempo, levanta discussões sobre a arte, valoriza a poesia, a beleza, as ideias, as lutas maiores e justificadas por uma sociedade menos superficial e vazia e mais poetizada, bela, inteligente e, se ainda não for muito, regada por uma fina réstia de ternura e generoso amor. Eça de Queirós moldura um belo quadro no qual se vislumbra perfeitamente um amor sincero, indomável, enlouquecedor e, essencialmente, fraternal, com a secura que habita o seio da sociedade e com o clamor urgente e inadiável por “civilização”, resvalando naquele que seria o sentido da existência humana.


Carlos e Maria Eduarda, interpretados por Ana Paula Arózio e Fábio Assunção na minissérie Os Maias, da Rede Globo

Pérola do realismo, uma das chaves-interpretativas para esse romance pode ser a social e também a psicológica, mas as possibilidades de entendê-lo são infinitas, embora os elementos principais de Os Maias sejam a personalidade humana – seus amores, dores, frustrações, angústias e sua incrível limitação diante do destino – e o complexo tecido social no qual ela encontra-se encravada.
Unindo linguagem impecável, narrativa inteligente e original, estilo denso, personagens sólidos e bem construídos, Eça de Queiróz ata em Os Maias as duas pontas do ser humano e do meio no qual ele vive, aquilo que há de mais belo e sublime e aquilo que há de mais indisfarçavelmente horrendo e rastejante. Uma obra rara, um presente gratuito entregue aos olhos, instantes de loucura, de devaneio, de saudade…

De uma coisa não resta dúvida, se Eça de Queirós diz ter decidido não fazer um romance, mas fazer um romance em que pusesse tudo o que tem, a nós, anestesiados por suas letras, não resta outra escolha senão colocarmos tudo o que temos na leitura deste livro, o que de fato fazemos, mesmo sem o perceber, inconscientemente. Quando nos damos conta já estamos todos dentro do livro, habitando as janelas tristes e tímidas do Ramalhete, chorando melancolicamente lágrimas soltas e nostálgicas ao lado de Carlos e Maria Eduarda, ouvindo as poesias declamadas nos saraus literários nas quais se sonha e se constrói em versos uma democracia branca, regada por paz e arte. Em outras palavras, não há como entender um realismo tão abismático se não nos rendermos ao interior do livro, colocando tudo que temos em suas entrelinhas disfarçadas, tudo aquilo que temos de mais enfadonho e covarde e também tudo aquilo que ainda temos de mais apaixonadamente sincero e belo!

À porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele vagão que para sempre a levava.

Nada desejar e nada recear… Não se abandonar a uma esperança nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e descompondo até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

– É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida: a paixão.

(trechos extraídos do romance Os Maias, de Eça de Queirós)

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Da arte de extrair do cotidiano as coisas simples e construir belíssimas obras de arte, da maestria ao usar as palavras, da habilidade em construir descrições atentas e cuidadosas, do encantamento e carinho ao esculpir cada frase, na sensibilidade em relação à vida humana, na sagacidade, perspicácia e talento literário em enxergar o outro, em curar ou revelar as dores da alma, em fazer da investigação psicológica densa e, ao mesmo tempo, singela a história mais perturbadora dentre todas as suas histórias. Da criatividade que surpreende, do enredo que prende a atenção, faz rir, angustia, revira a memória, cutuca a própria alma, dá forma ao inconsciente, cor ao medo, cheiro ao mistério, beleza à vida humana que em sua obra desfila tão docemente.
Da arte de escrever histórias curtas, que carregam toda sutileza necessária a um conto, de construir personagens reais, produtos de uma mistura tão bem dosada de sentimentos, contradições, medos, ilusões, recordações e sonhos, às vezes, confusos, desiguais e prolongados. Da simplicidade e sensibilidade estética e ética de ser Anton Tchekhov, um presente literário, um provocador de lágrimas, um pequeno milagre destes que, de vez em quando, aparecem por este mundo para algo de realmente lindo nos legar.
Já citado aqui no Impressões, no post “O cochicho do nada” que falava sobre o livro de contos de Tchekhov, “O Beijo e outras histórias”, o Impressões volta, mais uma vez, a falar deste escritor russo que soube, como poucos, iluminar a vida por meio da sua palavra. Em mais uma reunião de contos de Tchekhov, o livro “Um homem extraordinário e outras histórias” reúne contos exemplares do estilo do autor, histórias atmosféricas, cheias de um sentimento de sabedoria e compaixão, além de uma infinita generosidade para com o homem e sua alma multifacetada, taciturna, entrecortada por dramas, vazia de sentido, saciada por ilusões, desejosa de completude, urgente e angustiosamente fascinante.

Conservando a sua linguagem esculpida, poética, simples e, ao mesmo tempo, minuciosa, Tchekhov se revela, mais uma vez, nesta reunião de algumas de suas melhores histórias, um escritor que se afunda na caracterização psicológica de seus personagens e reproduz com isso tipos reais e comuns ao nosso cotidiano, que às vezes passam despercebidos ou andam por aí disfarçados, impostores deles mesmos, acima de tudo, o escritor reproduz a nós mesmos e talvez seja por isso que fascina tanto. Suas páginas, o preto sobre o branco, as entrelinhas mudas e alucinadas, são como espelhos esfumaçados de nossas feições imperfeitas, posto que humanas. Além da maestria na profunda investigação psicológica, Tchekhov abusa das descrições entremeadas por ações, do olhar atento sobre a natureza, sobre a beleza das coisas e do universo estático, tingido de um colorido tão bem enaltecido por ele e por aqueles que sabem de fato fazer arte. É uma combinação de psicologia e suave sensibilidade simplesmente linda! Tchekhov atingiu em sua obra a beleza literária e a beleza das coisas que tantos homens buscam pela vida sem nunca conseguirem encontrá-la ou enxergá-la de fato, sem, muitas vezes, nunca serem dignos dela e, por ser tão belo, por ser transpassado pela beleza, é talvez um enigma, um escritor além das críticas e análises literárias, um escritor que apenas se sente, se impregna, se liberta, um mistério insinuante e solitário, regado por uma réstia de tristeza, iluminado por um sopro de lucidez, sentido e alegria.

Avançando pelas páginas deste livro, encontramos contos como “O homem no estojo”, simplesmente genial, que nos revela de forma sonora e surpreendente, por meio de uma metáfora inteligente e sutil, a vida de um homem que se isolava do próprio mundo, das suas sensações, tomado por medo, invadido por um natural sentimento de solidão, um homem cujo sonho maior sempre fora esconder-se dentro de um estojo, protegido do frio, dos olhares, das vozes, do amor, por toda a eternidade. A construção desse personagem, em toda sua loucura e casmurrice, é plena, perfeita, um momento literário que paira acima da simples e efêmera finitude das coisas, uma obra de raro encanto, sublime e, ao mesmo tempo, tão próxima do cotidiano.

Em “Um homem extraordinário”, o escritor russo aposta novamente na construção esmerada e investigação psicológica de um personagem realmente extraordinário, extraordinário em sua frieza diante da vida, em seu caráter planificado, em seu pensamento burocraticamente e economicamente organizado, um homem que, nas palavras do próprio Tchekhov, torna o próprio ar pesado e faz ruir as paredes tal o medo e a sensação de ódio e desconforto que nos outros provoca. Este conto é particularmente sutil e fascinante, não só pela construção do personagem, mas também pelos detalhes da narrativa que, sabiamente colocados na hora e lugares corretos, fazem com que o leitor esboce um leve sorriso e tenha nos olhos uma expressão de surpresa e espanto, causados por tamanha maestria e talento narrativo.

No conto “Um dia no campo – Ceninha”, Tchekhov emociona pela simplicidade da história, pela bondade e generosidade de alguns personagens que aparecem neste e em outros contos deste livro e, faz os olhos ficarem de repente marejados de lágrimas ao se depararem com a simplicidade e gratuidade dos amores que não são vistos, daqueles que vivem em silêncio, dos quais apenas a lua é testemunha.

Em outra história retirada do cotidiano, “O relado do jardineiro-chefe”, Tchekhov utiliza da memória e do relato de um homem considerado sábio e quieto, para contar uma bela história da qual o personagem principal é um homem generoso, também sábio, que curava as dores do corpo e da alma, sem por isso cobrar nada em troca. Um homem que vivia ensimesmado em leituras, afundado em reflexões e contemplações, considerando o resto de tudo vulgaridades e tolices fabricadas. Neste relato do jardineiro, a mensagem principal é a de que se deve sempre acreditar na dignidade dos homens, conservar uma fé na espécie humana ainda que esta mostre, repetidas vezes que, a exemplo do que um dia disse Shakespeare, “no nosso século perverso e devasso, até a virtude tem de pedir perdão ao vício”.

E assim segue Tchekhov, em “Trapaceiros à força – Historinha de Ano-Novo”, neste conto, o escritor lança mão de toda sua ironia e constante perspicácia para construir uma história divertida e, ao mesmo tempo, de intensa capacidade reflexiva. Nela, motivado cada um por seus interesses, vícios, angústias, vontades e vaidades, os personagens decidem enganar o próprio tempo mexendo nos ponteiros do relógio e, com isso, ora adiantam a chegada do ano-novo, ora recuperam mais um tempo para o ano-velho em um jogo de enganar o tempo no qual eles acabam enganando a si mesmos. Nas entrelinhas, diz Tchekhov da irreversibilidade do passar do tempo, se uns os adiantam, outros o atrasam e ele volta ao correr habitual, os vício e vaidades que esperem…

Outro belíssimo conto dessa coletânea leva o nome de “Criançada”. Nesta história, o escritor reúne toda graça, naturalidade e espontaneidade das crianças aos sentimentos que aos poucos estas vão adquirindo com o passar do tempo e as diversas influências recebidas, que na história vêm à tona durante um jogo no qual se apostam alguns copeques. O genial deste conto é a maneira como o escritor mostra que para as crianças as brigas, ambições, sentimentos de amor-próprio e outras coisinhas mais, logo desaparecem e tudo volta a ficar bem de novo. Nada mais ilustrativo para falar da verdadeira essência da infância, permeada pela inexistência daquele sentimento de mágoa, ódio, inveja, frustração e tédio conservados e regados por muitos adultos ao longo da vida. Talvez por isso a infância seja linda de ser ver, como linda se faz neste conto de Tchekhov.

E as histórias seguem com situações incríveis como a de um peixe enamorado por uma moça que todos os fins de tarde ia se banhar na lagoa em que ele morava, a de um homem solitário que a anos vivia em uma estação de trem apenas com a sua esposa que ele há muito já não amava, descrente de que em sua vida algo de novo ou qualquer desgraça ainda pudesse lhe acontecer posto que para ele tudo de mal já lhe havia acontecido, até que o destino lança mão de suas teias ardilosas e enfeitiçadas e o surpreende com um novo amor e uma nova morada. Há também fragmentos da velhice, recortados por lembranças, por arrependimentos, por lágrimas escondidas porque envergonhadas, por visitas não tão sinceras, por abandonos múltiplos e miseráveis. Há atitudes confusas diante da desgraça alheia, um sentimento de pena que, como todo sentimento de pena, é mesquinho e preguiçoso, tão inútil quanto acovardado.
E, terminando o livro, nos preenche os olhos uma história belíssima tanto pelo enredo como pela delicadeza e esmero na escolha de cada palavra, na descrição de cada sentimento, na cor de cada lembrança, na confusão de cada momento. Tudo isso nos chega por meio de um olhar inumano, de uma inteligente e pensativa cachorrinha, “Cachtánca”, que dá nome ao conto. Por meio deste olhar inumano, aparentemente distante, Tchekhov revela todo fascínio e mesquinhez da alma humana. Traduz como ninguém a falta, o sentimento de angústia, de perda, de saudade, que chega sorrateiro, devagar e, de repente, preenche e perturba a cachorrinha. Também mostra o sentimento de indiferença em relação à vida, de conformismo, uma atitude indolente e desdenhosa em relação a tudo, um enfado permanente, um bufar eterno que na história se revela na figura de um gato, mas que na vida se reflete em muitas pessoas. Com sutileza e maestria, neste conto Tchekhov também pincela a visita da morte, a inquietação e o medo que essa figura sem cor e formas causa em animais ou homens, para depois deixar apenas um rastro de falta e mistério.
De todo o mais que possa ser dito, as palavras não serão tão belas e precisas quanto as dele, é preciso ler e ler-se a si mesmo…

“Tchekhov é um daqueles autores cuja inteligência é tão poderosa que por um momento somos seduzidos pelo prazer de acreditar no progresso humano, na evolução moral da espécie; então, em seguida, vemos que na verdade ele nada mais é que um gigante, uma anomalia, talvez um anjo, e que é bem possível que não tenhamos outro igual nos próximos mil anos”.
Russell Banks

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“Não podia acreditar nessa mudança; entretanto, era um fato. Haveria, acaso, alguma afinidade sutil entre os átomos químicos, que se aglutinavam em forma de cor na tela, e a alma que ele levava dentro de si? Seria possível que eles concretizassem o que a alma imaginava, que lhe convertesse os sonhos em realidade? Ou haveria outra razão mais terrível? Dorian estremeceu transido de pavor e voltou ao divã. Dali espreitava o retrato, com uma expressão horrorizada”. (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

Um homem de rara e sedutora beleza, de nome Dorian Gray, portador de um caráter ingênuo, de uma alma pura e sonhadora. Um pintor, Basil Hallward, em busca de um ideal estético, da harmonia e perfeição de formas, da combinação perfeita entre arte e expressão, vida e representação, de algo perfeito e irresistivelmente belo, capaz de ser alimento e inspiração da sua arte. Um aristocrático, Lorde Henry, cheio de teorias, conceitos prontos, munidos de certa dose de preconceito e hipocrisia, formulados para explicar a vida por meio de visões simplistas, maniqueístas, dicotômicas, olhares superficiais lançados sobre a teia tão complexa da existência humana, não raro dupla, múltipla ou, muitas vezes, nula. De todas as ideias de Lorde Henry, o ponto principal seria tirar da vida o máximo de prazer e vivenciar as mais diferentes e improváveis experiências, não importando de que natureza fossem estas últimas. Ter como principal teoria nada mais do que a própria vida e fazer dela uma busca frenética por prazer na direção de um novo hedonismo baseado, acima de tudo, no prazer e culto aos sentidos. Como finalidade suprema de sua pregação, musical e melancólica, estava a espiritualização dos sentidos. “Curar a alma por meio dos sentidos, e os sentidos por meio da alma”, com esta frase e alguns livros, Lorde Henry seduzira e envenenara em doses lentas e incendiárias Dorian Gray, extinguindo aos poucos a beleza de sua juventude, a bondade primitiva de seu coração, a ponto de que este último chegasse a considerar o pecado como um simples meio de realizar o conceito de belo.
É, basicamente, em torno desses três personagens que o escritor inglês Oscar Wilde constrói com sensibilidade, perspicácia e uma linguagem extremamente lapidada, o enredo de uma de suas mais famosas obras, O Retrato de Dorian Gray.
Ao deitar os olhos sobre as primeiras linhas do livro e, aos poucos, ir avançando pelas suas páginas, o que primeiro salta aos olhos é o estilo do autor, um estilo que se faz simples e, ao mesmo tempo, denso, reflexivo, a tal ponto que se chega a demorar um tempo em apenas uma página, na ânsia de apreender a riqueza de detalhes que ela apresenta de maneira sutil e inteligente em descrições constantes, entremeadas por ações, diáfanas e belas. Complementando o estilo denso e reflexivo de Oscar Wilde, a linguagem do livro mostra-se portadora de uma aguçada e sensível veia poética, de uma escolha minuciosa das palavras e expressões, de um cuidado e esmero na construção das frases. A linguagem é fascinante, tão perfeita em provocar o efeito que o autor busca que, em certas linhas, chega a angustiar o leitor.
Em alguns momentos, era como se quisesse penetrar nas entrelinhas deste livro e pousar meu corpo sobre as letras escritas em uma tentativa de que elas passassem das páginas brancas escritas para minha pele sedenta por letras e vazia.
Estilo e linguagem dão forma a uma obra que une as duas pontas da arte e da beleza. O Retrato de Dorian Gray mostra que a arte, como diz o próprio Oscar Wilde, muitas vezes é absolutamente inútil, mas, neste caso, a inutilidade de uma obra de arte se legitima pela intensidade e constante admiração que dela se faz. A arte aparece como, ao contrário do que se pensa, nem sempre um meio de revelar os sentimentos de quem a produz, mas também um meio de escondê-los ao mesmo tempo em que a paixão com que escrevemos um texto ou pintamos um quadro resvala, inevitavelmente, na obra produzida e pode fazer desta uma obra-prima, o mais terrível dos sortilégios, o repugnante ou maravilhoso espelho de uma alma.
Na esteira das discussões sobre a arte, Oscar Wilde traz em O Retrato de Dorian Gray, diversas reflexões sobre a vida, o amor, as mulheres, as relações amorosas, o prazer, a busca e o conhecimento dos sentidos, a existência da alma e a lógica ilógica da beleza. Uma beleza que, se para Dostoiévski é capaz de salvar o mundo e deitá-lo aos seus pés, revela-se em outro ângulo para Oscar Wilde. Este último traz em sua obra o outro lado da beleza, aquele que retoma a tragédia grega de Narciso, apaixonado e enlouquecido pela própria imagem refletida sobre a água. Na obra, por meio dos dramas e fraquezas de Dorian Gray, o personagem principal, a beleza se mostra ardilosa, repugnante e traiçoeira quando resvala na soberba, quando cega os sentidos, quando desafia a própria alma. Dorian tem um belo retrato pintado por Basil e, no momento em que o vê pela primeira vez, fascinado pela própria beleza e pureza da juventude pede, em um acesso de ilusão e prepotência, que para sempre sua aparência se conserve jovem, sem as marcas trazidas pelo tempo, pela idade e pelos vícios e vulgaridades que alguns homens acumulam ao longo da vida.

Em um sábio e inteligente jogo onde quem dá as cartas é o destino e a arte literária, Oscar Wilde constrói um enredo no qual, Dorian de fato tem seu pedido atendido, sua aparência segue jovem, sem os vincos do tempo, intacta, com o mesmo ar puro e ingênuo da mocidade, mas, à medida que ele entrega sua vida aos prazeres mais vulgares, às ações mais vis e cruéis, à destruição da alma de outros, ele vê, ao poucos, a sua imagem pintada por Basil de forma perfeita e magistral, adquirir um aspecto cada vez mais assustado, terrível, repugnante. É como se ao olhar o quadro fosse possível ler a alma de Dorian, ver como os vícios, mais do que a idade, haviam destruído sua beleza, tornado-a apagada, quase que imperceptível.
Nesse lance que revela uma grande sensibilidade e um indiscutível talento literário, Oscar Wilde mostra que a beleza é tremendamente efêmera e não se sustenta quando junto com ela não existem a coragem para ser bom, o talento para ser humano, a sensibilidade para guardar eternamente boas recordações. Em poucas palavras, ele revela que a beleza de fato deve ser contemplada, o mundo deve buscar o belo, mas este, por ser fascinante e enigmático, precisa, acima de tudo, saber existir para conservar-se original nas paredes da essência sutil de cada um, aquela que chamamos de alma. As duas faces da beleza são, de fato, a de Dostoiévski e de Oscar Wilde, em um movimento ela salva o mundo, em outro, também pode destruir uma alma.
Ao revelar os abismos da beleza, o escritor inglês também consegue na sua história revelar ao mundo a existência da alma. Na sua história, ele materializa o conceito de alma na forma de uma obra de arte. Esta deixa de habitar o campo do abstrato humano e passa a habitar, de forma material, o que de mais abstrato um ser humano pode produzir – a arte, conferindo a ela um caráter de vida própria, a arte que vive na alma, ou a alma que vive na arte.
Uma das chaves interpretativas do livro pode ser a psicológica, Dorian Gray sucumbe aos seus dramas, tenta escapar de seus medos, é envenenado por um livro e seduzido pelas teorias de Lorde Henry no mesmo movimento em que seduzia o mundo com sua beleza, entrega-se às drogas e aos prazeres mais mundanos, escapa da morte salvo pela máscara da mocidade, mas não escapa dela quando tenta extinguir a própria alma. Ao longo de toda a história, seus dramas são o drama do leitor, as descrições belíssimas do romance dividem-se com um mergulho profundo na escuridão da alma humana e na estética da arte.
Para citar Oscar Wilde, este diz dos livros que não existe livro moral nem imoral, eles são bem ou mal escritos. Sem dúvida alguma, O Retrato de Dorian Gray paira acima da moral e aparece como uma preciosidade ou pérola literária, muito bem escrita, exalando o cheiro de pétalas de rosas que perpassa e transcende toda a narrativa.

“Um grito de terror e indignação irrompeu-lhe dos lábios. Não se operara mudança visível, salvo nos olhos, onde Luzia uma expressão nova de astúcia, e na boca vincada, um trejeito hipócrita. A imagem odiosa tornara-se, se ainda era possível, mais repulsiva. O orvalho rubro continuava a porejar, mais vivo, como sangue recém-vertido… […] E ele estaria livre, livre dessa tela monstruosa dotada de alma, livre de suas admoestações hediondas. Viveria finalmente em paz. Empunhou, pois, a faca e trespassou o retrato. Ecoou um grito, seguido de estrépito. O grito pavoroso, na sua agonia, fora tão lancinante, que a criadagem acordou e acudiu alarmada. […] Ao entrarem na sala, viram na parede o magnífico retrato do amo, como eles o tinham conhecido, em pleno apogeu da sua esplêndida mocidade e beleza. No chão, jazia o cadáver de um homem em traje de rigor, com uma faca cravada no peito. Ele estava lívido, enrugado e repugnante. Só pelos anéis é que seus criados conseguiram identificá-lo”. (O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde)

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