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Especial

Diante de muitas questões que se colocam na atualidade, tantos desafios, causas mais humanas e carregadas de sentidos pelas quais lutar, a cooperação, sincronização e organização coletiva fazem falta no sentido de evitar que este nosso tempo, onde dificilmente conseguimos atingir um grau de participação e organização coletiva harmônica, seja marcado por lutas isoladas, angústias espalhadas e condenadas à falta de esperança, vozes que gritam mudas, porque solitárias, pessoas que falam e ouvem quase que constantemente o eco da própria voz.

Eis que surge, neste caótico e fantástico mundo nosso, um vídeo, produzido por alunos de uma Faculdade de Comunicação em Quebec, que é uma espécie de aula, um exemplo claro de como sincronia é apenas uma questão de treino, vontade, concentração, esforço e disposição das pessoas para tal.

O vídeo tem vários elementos que o tornam original e interessante. Primeiramente, não há edição, a gravação é contínua, ininterrupta e há uma perfeita sincronia entre música, movimento de corpo, movimentos gestuais, fala e dinâmica espaço temporal. Além de animado e divertido, ele trás uma proposta de produção totalmente diferenciada que depende, acima de tudo, da cooperação, participação e perfeita harmonia entre todos os participantes e também entre o conjunto de signos que ajudam a dar vida a ele.

É justamente com a colaboração de todos que se faz outro jornalismo, outro capitalismo, outro socialismo, outra realidade, outro professor, outra escola, outra universidade, outro amor, outra viajem. É com a voz coletiva que se constroem outros discursos, outras lógicas, que se erguem mais pontes e menos muros, que se recitam mais versos e menos ordens, que se abrem mais sorrisos e abraços, que se ajusta o olhar, sem muita luz ou muita sombra. É encarando esta luta como coletiva, carregada de um sentido social, pautada por uma verdadeira ética baseada em valores, não em moral que se conquista qualquer coisa, seja ela um prêmio, um namorado, uma vitória, um emprego, uma boa história.

É claro que tudo começa em cada um, a semente da luta, da insatisfação, do descontentamento, da busca por mais sentidos, por mais poesia, por mais humanismo, por mais verdade, por mais alegria é plantada no coração de cada um, no coração daqueles onde a terra é mais fértil, mais aberta, menos fechada, menos absoluta, mais inacabada, onde a terra é menos seca e mais molhada. Mas essa semente depois de plantada, depois que crescer, de em árvore se transformar, revelando toda potência existente no atual que se realiza por fim no virtual, não consegue crescer e se fazer árvore apenas a partir da semente, esta para germinar precisa da água, da luz, dos pequenos encantos da natureza viva, ou seja, a semente plantada não se faz árvore sozinha.

Da mesma forma, aquele que quer mudar, não muda sozinho, ele precisa do outro, ele precisa de outros sonhos tão belos quanto o seu, que fortaleçam o seu, ele precisa da sincronia dos alunos de Quebec para que, assim como eles, produzam um vídeo sem edições, uma obra completa, bela, que ao menos faça sentido, que ao menos queira sempre construir. Às vezes, podemos achar que estamos sozinhos, no desespero de um dia, quando somos destruídos por alguma outra pessoa sem aquela mesma terra fértil a cobrir seu coração, mas depois que o desespero passa é possível ver que não estamos sozinhos, é possível se completar com as coisas miúdas e fazer delas encantadas. É possível fazer das pequenas coisas o encanto da vida, extraindo o silêncio de suas mais profundas e intraduzíveis cores e formas.

Começemos pela poesia…

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.

Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

“Meu fado é de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.”

“No osso da fala dos loucos têm lírios.”

“Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser árvore.”

Manoel de Barros

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Desejo

Luiz Fuganti


Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto, professor e escritor. Desde 1986 ministra cursos, palestras e seminários acerca de um tipo de pensamento sem referências, imanente à própria natureza. Foi um dos fundadores da ONG Pivot em 2002, não mantém vínculos institucionais e criou um movimento, a Escola Nômade de Filosofia, resultante das práticas de pensamento que vem realizando.

Recentemente, assisti a uma palestra de Luiz Fuganti que desconstruiu a idéia de verdade comumente estabelecida entre nós. Ele começou sua palestra indagando “quem precisa da verdade?” e durante toda a sua fala buscou demonstrar diante do público a coerência e sustentabilidade da resposta dada por ele a esta pergunta “aquele que precisa da verdade exterior, imposta, construída sócio-historicamente e religiosamente é aquele que possui uma vida reativa em contraposição a uma vida em essência, dotada de potencialidade e autonomia, pensamento alegre e produção de um corpo pleno”.

A partir daí, Fuganti discorre sobre a história da verdade, fala dos três mestres da verdade na antiguidade grega, sobre um novo mestre da verdade e, por fim, sobre a condição de acesso à verdade. Como pano de fundo de todas essas discussões sobre verdade e mentira aparece a relação entre o desejo e o pensamento, quando Fuganti nos revela a existência de dois caminhos: o caminho da forma e o caminho do acontecimento, sendo que apenas este último é capaz de nos conduzir a uma verdade.

Verdade esta que não se faz absoluta em relação ao mundo exterior e físico das aparências, posto que esta não existe, mas verdade do mundo interior de quem constrói uma vida cuja essência permite recebê-la.

As ideias de Fuganti se contrapõem ao tempo em que vivemos, um tempo em que não mais se ousa desejar, agir epensar, um tempo onde a covardia, o medo de arriscar e de criar novas maneiras de viver corrói as consciências, como diz o filósofo.



“Vivemos um pessimismo e conformismo íntimos da contemporaneidade e com isso nos esquecemos de buscar e nutrir modos de vida que se constituem como autênticas obras de arte e modos de eternidade.” (Luiz Fuganti)

Aos navegantes indico aqui um vídeo no qual Fuganti fala sobre o desejo e sobre a ilusão que construímos em torno dele. O filósofo diz que nosso grande equívoco na contemporaneidade é conceber o desejo como um sentimento que deseja algo exterior a nós, que está fora do nosso alcançe e que complementaria a nossa substância, o nosso sujeito, ou seja, ao desejo faltaria o objeto, ele se constituiria na falta, um grave erro que alimenta muita confusão e serve apenas ao poder, este que se nutre de ilusão e confusão.

Fuganti aponta um caminho para que essa ilusão possa ser desfeita desde que o sujeito entenda que tudo começa pelo meio, o desejo na verdade está no próprio acontecimento, no cerne do acontecimento, como diz Fuganti, então é o acontecimento que deseja em nós e não algo em nós que deseja o objeto.

O sujeito precisa encontrar a natureza do desejo no inconsciente da superfície: a virtualidade. O virtual é que deseja em nós, na medida em que a presença que nos constitui se encontra com a virtualidade do acontecimento. Nesse encontro o desejo emerge e se efetua.

Desafio fugantiano: O que é o acontecimento que deseja em nós? O segredo é chegar até ele para nos libertarmos de todos os sistemas de referência.

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Dominique Wolton, sociólogo francês

O sociólogo francês e membro do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França, Dominique Wolton, falou ontem à noite a cerca de dois mil participantes na abertura do Intercom, XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, que acontece em Curitiba dos dias 4 a 7 de setembro.
Dominique falou sobre a comunicação como valor democrático e grande questão política do século XXI e enfatizou, em vários momentos, a diferença entre a informação e a comunicação, afirmando que a grande descoberta do século XX é que temos muita informação, mas não nos comunicamos de fato.
Diante disso, o sociólogo enumerou algumas dificuldades instaladas na sociedade contemporânea que impedem uma comunicação que tenha como objetivo maior o conhecimento e não a simples troca alucinada de mensagens.
A primeira delas diz respeito à dificuldade do homem em tolerar e conviver. Se não há convivência, não há possibilidade de comunicação, assim como não há democracia sem comunicação e a democracia pressupõe justamente valores que orientam uma boa convivência, como o respeito ao outro e a negociação pura e simples, em busca da aceitação dos valores do outro. O Brasil é citado por ele como sendo um exemplo de lição política e de convivência.
A segunda dificuldade diz respeito à ausência de um espaço político efetivo. Segundo ele, vivemos em um mundo onde a imprensa se instaura, há uma participação cada vez mais ativa da opinião pública e a comunicação política se impõe como motor e cerne da democracia, uma comunicação que não é marketing e sim condição para o seu funcionamento.
Ao mesmo tempo, ele ressalta que vivemos um modelo de democracia de massa, com um sufrágio universal contraditório e uma comunicação que se faz contraditória dentro da lógica globalizada.
A globalização por sua vez, segundo Dominique, veio depois do fim do comunismo e inaugurou a era da multipolaridade do poder no contexto de um mundo sem regulação, onde a produção e difusão de milhares de informações não basta para que ocorra a comunicação, já que, neste ponto, surge a potência da alteridade, ou seja, o peso do outro que nunca está totalmente alinhado com a nossa opinião.
O fato é que a mídia, segundo o sociólogo, se constitui como uma “mídia come tudo”, em outras palavras, os espaços midiáticos são superiores aos políticos, há um reforço da mídia e da opinião pública e um enfraquecimento do peso político. Com uma política enfraquecida, a relação entre os homens, objeto primeiro desta, também se enfraquece. Se, no pensamento de Dominique, para ocorrer a comunicação a figura do outro e as relações humanas são essenciais, com um espaço político enfraquecido gera-se uma grande dificuldade para que a comunicação aconteça de fato.
Outra contradição apontada por Dominique existe entre a velocidade da informação e a lentidão na comunicação, já que para esta ocorrer os homens precisam se compreender e isto não acontece, pois a política é falha, como dito acima.
O comunitarismo também é apontado por ele como uma ameaça ao estado nacional, alimentando a ilusão interativa criada pela internet e dificultando a comunicação. A ilusão que temos de transparência também dificulta a comunicação segundo Dominique, já que ter transparência não garante efetivamente uma melhor compreensão da informação.

Mas o quê fazer para salvar o lugar da comunicação e o modelo democrático?

– primeiramente, entender a comunicação como uma relação mais complexa que a simples mensagem divulgada e transmitida.
– olhar a comunicação como algo essencial para o ser humano que pressupõe duas atitudes básicas e primeiras: a negociação e a convivência para garantir o mínimo de equilíbrio na organização social, em um contexto de globalização cultural, não só econômica e política.
– lutar contra a ideologia da técnica. Dominique diz que transferimos toda deficiência na comunicação para a performance técnica, enquanto que, na verdade, na comunicação o mais complicado não é a técnica e sim o homem. O homem pode ser ruim ou bom com a técnica, no entanto, esta é sempre neutra. Portanto, seja qual for a performance das ferramentas, o social é sempre mais complexo.
– enfatizar o papel da comunidade internacional e levar a política para a internet, implantando um direito relacionado a ela no âmbito da Lei Democrática Mundial.
– construir zonas regionais de convivência política, passar do mito da Aldeia Global para a tragédia da Torre de Babel. Um exemplo citado por ele é a União Europeia, modelo de convivência política que pode ser inventado.
– reforçar espaços públicos nacionais e reduzir a concentração da indústria cultural e do conhecimento em nível mundial.
– revalorizar e defender a profissão de jornalista, reduzindo a demagogia de que não precisamos mais de professor, jornalista ou médico na sociedade da informação. Esta não é uma sociedade onde todos fazem tudo e sabem de tudo, mas onde se valoriza o papel das mídias intermediárias.

Momentos de Dominique:

“Devemos nos constituir como seres sociais, não técnicos.”
“Compreender que não compreendemos o outro, só assim pode existir respeito e a percepção de que não há uma hierarquia de culturas.”
“O homem precisa ter cuidado para não ser vítima da própria vitória. Somos mais complicados que um computador. Guerras são fenômenos políticos, humanos, não técnicos.”
“A evolução técnica não extingue a matança no mundo, os homens continuam a matar-se uns aos outros, aí entra a convivência, elemento indispensável para a paz. Se quisermos paz devemos considerar o humano além da técnica e praticar uma palavra que talvez nunca tenha sido valorizada e considerada na história da humanidade: tolerância.”
“Busquemos uma vontade de comunicar e não simplesmente informar.”
“Que os homens pratiquem o reconhecimento de uma alteridade que não rompa o laço frágil do amor. Este pode parecer pouco, mas é tudo, e quando ele acaba não resta nada. Por isso, toleremo-nos e busquemos uma verdadeira educação política.”

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Bonecas da Primavera



O Grupo Primavera foi fundado por voluntárias em 1981 e desenvolve programas de educação complementar junto a meninas de 8 a 17 anos, moradoras do Jardim São Marcos, na periferia de Campinas. Atualmente, os projetos da entidade atingem mais de 400 adolescentes, suas famílias e a comunidade local.

O Grupo Primavera existe em um espaço que de longe pode parecer pequeno, mas, à medida que se entra pelos seus corredores e portas escondidas, salas vão se abrindo. São espaços livres onde acontecem aulas de dança, salas com computadores de última geração onde as meninas aprendem a utilizar as infinitas possibilidades da rede e são inseridas no mundo da tecnologia e salas sem computadores, mas com lousas e carteiras para que as meninas possam se construir por meio do conhecimento básico e essencial.

A grande marca do Grupo Primavera são as bonecas. Estas que são a companheira de infância de todas as mulheres, o rascunho de seus filhos do futuro, a promessa de um talento de ser mãe. O grupo primavera tem um espaço onde funciona uma oficina de confecção de bonecas de pano. Na oficina, um colorido que mistura alegria e esperança invade os olhos emocionados de quem entra. São retalhos espalhados pelo chão, linhas coloridas pelas paredes, mesas cheias de bonecas ainda não acabadas, pois nestas mesas estão sentadas mulheres e meninas com a missão de, justamente, terminá-las. Além da confecção de bonecas é possível notar que algumas peças de artesanato também saem de mãos tão habilidosas, sensíveis e lutadoras. Tudo é feito com muito cuidado, a boneca é delicada e autêntica em cada detalhe, parecendo sofisticada e simples, infantil e madura, às vezes menos brinquedo e mais menina, mais uma das meninas do Grupo Primavera. As bonecas depois de prontas são vendidas em uma loja do Shopping Galleria em Campinas, espaço cedido gratuitamente pelo Shopping ao grupo. Toda renda proveniente das vendas é revertida em benefícios para o Grupo Primavera. Sem dúvida alguma, a oficina de bonecas é um dos motores principais desta entidade voluntária, já que além de oferecer trabalho para as mulheres da comunidade e atividade para as meninas do grupo, gera uma renda que ajuda o Grupo a crescer e se modernizar cada vez mais, visando sempre uma melhor formação humana e educacional, com base em valores e vivência cultural.

No entanto, a oficina não é o motor principal do Grupo Primavera. Mais importante do que ela é a iniciativa, a coragem e a determinação de um grupo de mulheres que decidiu, voluntariamente, olhar para outras mulheres que precisavam exatamente deste olhar. Simone Rodrigues, uma das mulheres que fazem parte do conselho da entidade, lembra que as meninas, em sua maioria, não têm histórias muito felizes. São traços do abandono, da desigualdade de oportunidades e do desperdício de talentos. Vítimas da violência, da ausência de cultura e educação. Desconhecem essas meninas o que é esperança e sonho.

No entanto, uma vez no Grupo Primavera essas meninas conhecem outra realidade. “As meninas ficam o dia todo aqui com a gente. Elas se revezam em atividades como aula de dança, aula de informática, aulas referentes às matérias básicas do ensino infantil, fundamental e médio e de cursinho preparatório para vestibulinhos dos cursos técnicos. Para ministrar todas essas atividades, contamos com um grupo de educadores, psicólogos e temos também uma assistente social”, diz Simone.

Enquanto andava pelos corredores do Grupo Primavera e me admirava com tudo aquilo, pensava em como os brasileiros lutam para melhorar a realidade do nosso país. As mulheres do Grupo Primavera me fizeram lembrar como somos um povo corajoso, que, de repente, deixa de olhar para si mesmo e olha para o próximo, para alguém que precisa de mais, que pede mais.

O Brasil ainda está cheio de desigualdades, abismos, cenas que envergonham e chocam, ainda estamos longe de uma democracia, muito menos de uma civilidade humana e cultural, mas temos exemplos como o das mulheres que construíram e constroem diariamente o Grupo Primavera e, como elas, aposto que muitas outras também dedicam parte do seu dia e do seu tempo para ajudar o outro sem exigir nada em troca, exemplo maior de alteridade e consciência social.

É com ações como a do Grupo Primavera que se constrói um país melhor. O Grupo me encantou, pois reúne tudo o que um país e seu povo, principalmente seus jovens, precisam: educação e cultura.

Que as bonecas do Grupo Primavera espalhem sua beleza, suas cores e sua inocência por esse nosso mundo que há muito parece ter se esquecido delas.

Uma vez vi uma flor se abrindo no inverno, a despeito da neve…

Nunca me esqueci. Tomei essa visão como metáfora do que acontece na vida: nos campos queimados pela geada, há sinais de Primavera.

Assim é o Grupo Primavera, sinal de esperança para crianças e adolescentes que não têm esperança.

Ao pensar no Grupo Primavera, eu sorrio de felicidade como corri ao ver aquela flor teimosa sob a neve…

Ajudar o Grupo Primavera é ajudar a Primavera a florescer…

Rubem Alves

Educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp







Do ninho do passarinho

Ele voa rapidinho


Com olhinhos de jasmim


Ele pisca para mim!

Mariela Concino dos Santos, 10 anos

Menina quando nasce

Chora sem parar


De onde sai lágrima menina?


Sai do meu olhar!

Gracielle B. de Mello, 11 anos

Essas poesias foram produzidas por meninas do Grupo Primavera em oficinas realizadas pela poetiza Sarah de Oliveira Passarella na última semana de julho, com 28 meninas, de 10 a 11 anos.

O Grupo Primavera recebeu o prêmio Kanitz Bem-Eficiente, “Melhor da Década” (2006) e tem conquistado reconhecimento nacional e internacional, como da UNICEF e da UNESCO.



Loja do Grupo Primavera

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Branca de Neve: cheia de filhos e o príncipe no sofá

Qualquer mulher quando visita sua infância se lembra das princesas e heroínas dos contos de fadas. Mulheres lindas, sensíveis, inocentes e, ao mesmo tempo, sedutoras. Mulheres perfeitas, idealizadas, possíveis apenas no território da ficção, distantes das dificuldades e da realidade da vida. Talvez, o que sempre tenha nos fascinado nessas princesas seja justamente essa perfeição e a certeza de um final feliz, aquele onde todas as dificuldades e maldades são superadas em busca do tão repetido “e eles viveram felizes para sempre”.
As princesas são parte da infância de muitas mulheres. Elas são nossos sonhos, nossa projeção, a inocência típica desta inicial fase da vida. Difícil encontrar uma mulher que não tenha uma princesa preferida, mais difícil ainda encontrar alguma que não sonhou com um grande amor, talvez um príncipe que não viesse em um cavalo branco, mas que soubesse ao menos fazê-la feliz. O fato é que um dia acordamos para a realidade ou a realidade nos acorda, vemos que os príncipes não são tão belos assim, as princesas não tão perfeitas e as histórias nem sempre tão felizes e carregadas daquele maniqueísmo simplista.
A fotógrafa canadense Dina Goldstein vem nos ajudar nesta descoberta com sua série “Fallen Princesses” (Princesas Decaídas), onde ela traz as princesas popularizadas por Walt Disney para o mundo real, que inclui situações nem sempre tão agradáveis. As fotografias são belas, coloridas, inteligentes e reais. Além de criativas, propõem uma reflexão sobre a realidade do amor por meio da estética da arte.
É, um pouco de realidade não faz mal a ninguém, afinal, se os contos de fadas não existem o verdadeiro amor mostra-se real e belo justamente nas suas dificuldades e imperfeições, materializando-se em diferentes histórias do nosso cotidiano, muitas vezes, o que nos falta é apenas um pouco de coragem para vivê-lo já que o verdadeiro amor costuma não ser o mais fácil. Mas, como dizem, a sua chama não se apaga nunca, nem mesmo depois da morte.

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O jornalista e escritor Gay Talese

O jornalista e escritor norte-americano Gay Talese foi o entrevistado do programa Roda Viva da TV Cultura exibido nesta segunda-feira, 20 de julho de 2009. Gay Talese se tornou um dos expoentes do gênero literário mais conhecido como New Journalism – uma inovação de origem um tanto incerta, surgida principalmente nas revistas Esquire, Haper’s, e The New Yorker, ao lado de outros nomes como Truman Capote e Tom Wolf. O New Journalism é um jornalismo de não-ficção, ou seja, ele se baseia em fatos da realidade, do cotidiano, mas os relata de uma forma um pouco diferente do modelo tradicional, dando aos acontecimentos um toque literário, um olhar mais amplo, profundo e humano.
Muitos críticos ao New Journalism dizem que os autores deste gênero deturpam os fatos para conseguir um maior efeito dramático, afirmação que o próprio Talese contesta em seu livro Fama e Anonimato. Neste, Talese afirma que embora, muitas vezes, o novo jornalismo seja lido como ficção, ele não é ficção. Segundo o jornalista e escritor, ele é, ou pelo menos deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais a moda antiga. Ainda segundo Talese, o novo jornalismo permite uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando que o narrador se insira na narrativa ou assuma uma postura mais neutra diante dos fatos e dos personagens que compõem uma história a ser contada.
Mas, New Journalism a parte, a entrevista de Talese no Roda Viva teve muitos pontos positivos. O jornalista mostrou em cada pergunta sua facilidade com as palavras, sua fala natural e articulada, seu raciocínio lógico, seus valores morais e pessoais. Ele falou do jornalismo como alguém que realmente vive e é apaixonado pelo que faz. Enumerou os princípios básicos que devem orientar o jornalista em sua profissão. Segundo Talese seriam eles: curiosidade, busca pela exatidão e precisão e, o que ele considera o mais importante, capacidade de produzir um bom texto, se possível com literatura. Ao falar de exatidão e precisão, o jornalista ressaltou que estas são mais importantes que a velocidade ou a rapidez na apuração de um fato. Não concorda com os jornalistas que são obcecados por furos. Segundo Talese, um bom jornalismo se faz com precisão, responsabilidade e isenção. Ele não se importa de passar meses pesquisando um tema, mergulhado na vida de algum personagem, nos cenários de algum lugar. O importante é reunir dados suficientes para que no final você possa produzir uma boa reportagem, diz Talese. E aí entra o ponto mais interessante de sua entrevista: o texto jornalístico. Ele disse que de nada adianta curiosidade, apuração ou precisão se o jornalista não for capaz de elaborar um bom texto, de saber distribuir as palavras, equilibrar as impressões e transmitir para um pedaço de papel a realidade por ele vista da forma mais clara e harmoniosa possível, o que só se consegue com um conhecimento profundo da língua com a qual se escreve. É necessário compreender suas regras e seus recursos literários. Por isso, em sua opinião, um bom texto tem que ter literatura.
A literatura, quando bem utilizada, enriquece o relato, tornando-o mais interessante e rico. Talese lembra que quando lemos um romance de ficção nos interessamos pela história, nos identificamos com personagens ali retratados e somos envolvidos pelo correto e sedutor uso da linguagem, ou seja, somos seduzidos pela literatura. Um texto de não-ficção deveria ser tão bem escrito a ponto de provocar o mesmo efeito, envolvendo o leitor nos fatos da realidade, não nas espirais da imaginação e da fantasia, mas envolvendo-o a ponto de tornar a realidade algo tão interessante e importante quanto um bom romance. O essencial é perceber que a literatura pode estar presente no jornalismo de maneiras muito sutis, em textos puramente informativos, que visam a objetividade, ou em textos como crônicas e perfis, que já adotam e admitem um tom mais poético.
Além de defender a literatura como forma de enriquecer o texto jornalístico sem que este perca sua função originalmente informativa, Talese falou da importância de estar com as pessoas, de manter uma boa relação com as fontes, tornar-se quase que íntimo delas, ganhando a sua confiança. Defendeu o contato humano, real, em detrimento da mediação tecnológica, cada vez mais freqüente e comum no jornalismo atual.
Quando perguntado a respeito da formação necessária para se tornar um bom jornalista, Talese disse que não acredita que alguém se forme jornalista, para ele, o jornalista de verdade precisa ter algo dentro dele que o chame para o jornalismo, algo que vai muito além de técnicas, aparências, furos e passa muito perto da determinação, vontade, persistência, paixão pelas pessoas, pelas histórias e pela palavra escrita.

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Manifestação X Arte

Boneco de borracha apresentado na 53ª edição da Bienal de Veneza: manifestação pura e simples ou técnica artistica na semelhança com o real?

Nas palavras de Robert Hughes, um dos mais famosos críticos de arte do mundo, “a experimentação em arte é somente figura de retórica”. Esta frase e as demais ideias expostas em recente texto do jornalista Mino Carta, publicado na revista Carta Capital, me colocaram a refletir sobre a arte e sobre algumas outras questões como a existência de limites em sua constituição e a delimitação, às vezes esfumaçada, da fronteira entre a arte que é arte e a manifestação pura e simples de qualquer coisa que se faça disfarçada e materializada no jogo de cores e formas de um quadro, no movimento de luzes e corpos no palco, nas entrelinhas das páginas de um livro, nos passos de um espetáculo, nas formas subjetivas de um objeto esculpido para ser admirado ou decifrado. Como se olhasse esses conceitos refletidos no espelho de minha memória encontrei no inconsciente indagações a respeito da possibilidade de espetacularização da experiência artística e imbecialização parcial, não geral, do mundo, dos homens, da lógica moderna.
Há uma frase que gosto do poeta Ferreira Gullar que diz: “Toda arte é manifestação, mas nem toda manifestação é arte”. Gullar tem uma visão mais crítica em relação à arte dita moderna e contemporânea. Ele exagera em alguns pontos de sua posição, generalizando certos conceitos, mas o considero claro e correto em outros, como quando ele fala em critérios, em certa racionalidade na construção da obra artística, em uma coerência mínima entre os elementos que a desenham, que a revelam aos olhos do mundo. Gullar fala de razão, critério e coerência, palavras cada vez mais raras em um mundo que confunde liberdade de expressão com técnica artística ou jornalística (fazendo aqui uma breve, mas suficiente menção a respeito da polêmica do diploma para exercer a profissão de jornalista). Queremos ser multiculturais, modernos, abertos, globalizados, mas esquecemos de ser claros, lúcidos, sólidos. Sou uma defensora clara da liberdade, da arte em toda sua expressão e plenitude para que ela deixe transparecer os mais profundos sentimentos, as mais belas sensações, os mais impossíveis dramas e amores, mas acredito que ainda mais importante que a liberdade seja o conhecimento, posto que a liberdade nos é tirada já o conhecimento não, ele se faz cumulativo e eterno. Uma arte apenas livre pode ser refutada, tornando-se ligeira e frágil, mas uma arte pensada, fundamentada no conhecimento e no saber artístico é eterna, forte, pungente e lancinante.
Exemplos como o da recente Bienal de Veneza nos mostram o quanto a arte pode perder parte da sua estética em benefício da obsessão pelo novo e da reprodução de modelos midiáticos. A arte tem se transformado, em alguns casos, em mais um produto da indústria cultural, ou seja, tornou-se superficial, anti-reflexiva, descartável, efêmera e banalizada.
A arte contemporânea tem muito de belo, de sentido, de lógica, de emoção, mas alguns de seus cantos por vezes mostram-se incoerentes e, neste caso, é preciso razão e discernimento técnico e estético para aparar as arestas, acertar os detalhes e mostrar ao público o real sentido da experiência artística que é, basicamente, a busca do diálogo entre texto, imagem, objeto, dor e, por vezes, loucura, estabelecendo uma relação entre as diferentes formas artísticas. A arte deve se fazer sempre da complementaridade de processos criativos que possam, acima de tudo, ampliar o sentido cultural. Lembremos que a linha que separa a razão da emoção, a técnica da inspiração, o conhecimento da vocação é muito tênue. É preciso ter cuidado no fazer arte, ela é mais do que uma pura e simples manifestação, ela é menos do que uma técnica rígida, mas ela bebe de todas essas fontes para se constituir enquanto melhor representação da verdadeira liberdade – a liberdade que existe no conhecimento.

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Jennifer Jones como Emma Bovary no filme A Brief Summary, de 1949

Estive lendo sobre Gustave Flaubert, mestre do realismo francês, minucioso na escolha das palavras, sentimental nos detalhes de um cotidiano para ele mortalmente carregado de tédio, ensopado do mesmo, inebriado por falsidades e convencionalismos. Estive lendo sobre suas obras, suas influências, sua história de vida marcada por solidões ocasionais e por ataques nervosos depois dos quais sobrevinha sempre a perda da consciência.
Segundo os médicos, Flaubert extravasava sua demasiada energia por meio desses acessos “histérico-epiléticos”. Os ataques desapareceram durante muitos anos de sua vida e só voltariam a agredi-lo no fim de sua existência. Existência esta que se encerra quando a palavra certa já não lhe ocorria mais, quando a mão já não tinha mais firmeza. Com um golpe mortal, o tédio se dissolve, a vida para. Em um dia de primavera de 1880 esse grande escritor francês resolve enfim suas inquietações, mesmo assim, morre sem cumprir uma das promessas que fez a um amigo. Flaubert queria resumir a sua vida, dizia ele, “tentarei contar-me a mim mesmo”.
Lendo tantas coisas sobre o escritor o que mais me impressionou foi entendê-lo justo por meio de sua personagem mais emblemática, forte, densa, misteriosa e fantástica – Emma Bovary, ou Madame Bovary. No livro que leva o nome da personagem, Flaubert decide atacar a moral burguesa, posta a nu em toda sua fragilidade, convencionalismo e falsidade, por meio da caracterização da vida monótona e sem atrativos da província.
O livro foi classificado por muitos da sociedade da época como imoral e, por isso, foi censurado, tendo sua publicação suspendia e seu autor processado. Flaubert sentou-se no banco dos réus em janeiro de 1857 para responder ao processo e ouvir um promotor pequeno e nervoso descrever Emma Bovary citando passagens do livro e investindo contra o autor.
Gustave Flaubert

A heroína era descrita e vista como depravada pela burguesia francesa, mas, segundo o advogado de defesa de Flaubert, toda depravação de Emma tinha que ser muito bem descrita, como de fato o foi pelo autor, para provar que o seu fim trágico constituiria o justo castigo de seus erros. Flaubert acabou absolvido graças à habilidade da defesa em distorcer e dissimular os verdadeiros propósitos de sua obra. Esta, uma vez publicada, esgotou-se em pouco tempo. Todos queriam saber quem era Madame Bovary, em quem o autor se inspirara para criar essa mulher que causava tanto alarde, tanta discussão. Porque ela era tão perigosa para os valores daquela sociedade tediante e vazia era a pergunta a que muitos se faziam na época.
A realidade é que Emma era a única personagem do romance de Flaubert que, para escapar à mediocridade do ambiente, enfrenta os preconceitos e persegue os próprios sonhos e aspirações. Por sua coragem e autenticidade ela se faz linda e sedutora e fica ainda mais instigante por meio da descrição de um autor que desejava a forma perfeita, a palavra certa e passava noites em busca de um adjetivo, semanas atrás de uma frase, escrevia e reescrevia uma página dezenas de vezes.
Mas, afinal, quem seria a mulher inspiradora de tão enigmática personagem? Nenhuma pista era satisfatória até que Flaubert decidiu revelar quem era Madame Bovary. “Madame Bovary sou eu” disse o escritor. De fato, conhecendo um pouco melhor a história do autor das linhas que deram forma a tão incrível mulher, percebe-se que a frase encerra muita verdade. Flaubert teve em sua vida o mesmo temperamento romântico de Emma e, assim como ela, também procurava fugir à mesquinhez cotidiana e sonhava com amores irreais, ansiando por uma existência mais plena.
Talvez, assim como Emma ele também cultivasse o desejo de sucumbir ao gosto do arsênico não vendo saída para a complexidade das experiências de uma natureza humana que se nega a fazer os pactos a que sorrateiramente somos coagidos por um entorno saturado pela aparência e falsidade das relações. O próprio Flaubert chegou a declarar ao concluir Madame Bovary: “Quando escrevi a cena do envenenamento, senti na boca o gosto do arsênico, senti-me envenenado. Tanto que tive duas indigestões seguidas – duas indigestões reais…”

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Fé na mídia: a cruz é a antena, a antena é a cruz

Vivemos no mundo pós-moderno, na era da internet e da globalização, na sociedade da telemática – aquela que transmite voz, dados e imagem em tempo real. Somos iludidos e bombardeados pelas ofertas de consumo em uma sociedade onde as partes se diluem no todo. Impera a superficialidade, o materialismo, o culto ao corpo, a pressa que não nos permite viver o lento, a dinâmica do tempo. Em meio à ilusão de conectividade, estamos mais isolados do que nunca, individualizados, perdemos a noção do coletivo e não encontramos um sentido para nossa vida. Somos apenas mais uma engrenagem da roda do mercado que gira frenética impulsionada pela lógica do espetáculo, pela midiatização generalizada e pelas regras da indústria cultural.

Rebanho que cresce: evangélicos na Marcha para Jesus em São Paulo, junho de 2008

O mercado e as regras desta sociedade capitalista parecem ter tomado conta de tudo, inclusive da própria espiritualidade que já não escapa da lógica esvaziada de sentido que pauta a sociedade moderna. Falo aqui de um fenômeno que vem se tornando cada vez mais comum nos dias de hoje: o processo de midiatização e adaptação às regras de mercado por que passa a igreja na atualidade. As chamada igrejas históricas ou tradicionais (católica e protestante, por exemplo) adaptam forma, linguagem e discurso para se inserir dentro das regras da sociedade mídia-espetáculo, com isso, ocorre um nítido processo de mercantilização da fé e espetacularização da experiência religiosa que perde a sua gratuidade.
A fé e o milagre viraram condição, a gratuidade e a essência da espiritualidade deram lugar a discursos superficiais e sedutores que transformaram a fé em um produto e o fiel em um simples consumidor. Percebemos, claramente, neste processo de midiatização e espetacularização da igreja o cotidiano travestido em linguagem ficcional e a substituição da lógica da fraternidade e da solidariedade pela lógica da concorrência já que em um cenário marcado pela liberdade religiosa há uma pluralidade de religiões que se vêm como concorrentes, disputando consumidores e deixando claro aquilo que dissemos no início: a sociedade de mercado tomou conta da nossa espiritualidade.

Decano dos televangelistas: Bispo R.R Soares está há mais de 25 anos no ar

A realidade é que neste processo de espetacularização as essências se perdem em favor de uma uniformização da fé que navega ao sabor das ondas do mercado. O vínculo comunitário fica pra trás dando lugar à experiência religiosa direta e individualizada, em outras palavras, ao discurso “Deus sem religião”. Ocorre um acúmulo de mediações e a lógica da indústria cultural de dar ao público o que ele precisa e, em um segundo momento, dizer a ele o que ele deve querer bate na porta dos templos eletrônicos e entra à vontade, sem pedir licença.
Em meio a essa inversão de valores e verdades, a igreja quantifica o mercado religioso, o reduz a números e estatísticas e, visando crescer tal como uma empresa, incorpora as ferramentas de marketing para alcançar maior visibilidade e ajustar a sua oferta à demanda. Tudo é pensado para aumentar o número de adeptos à sua mensagem e, consequentemente, o lucro, satisfazendo desejos e necessidades do consumidor da fé.
Mas, a consequência mais grave de todo esse processo de espetacularização é que nós, seres humanos, não temos mais a quem recorrer. Ou nos contentamos com a superficialidade sedutora dos discursos religiosos atuais ou nos individualizamos na nossa própria experiência religiosa. A lógica do mercado nos prendeu em mais uma de suas armadilhas sufocando a nossa espiritualidade em um contexto onde não se sabe mais o que é produto e o que é mensagem, as coisas se confundem e passam a vir em um pacote que as pessoas consomem sem distinguir as partes.
O homem, que recorria à fé para buscar respostas e explicações que a razão não é capaz de dar, agora encontra apenas uma religião que para ele já não faz mais sentido porque não reflete a sua realidade e sim a realidade do mercado. Somos todos espetáculo, somos todos mídia, não mais nos reconhecemos enquanto causa ou efeito e nossa falta de sentido transborda e enlouquece. Eis o show da fé caro navegante, o último e derradeiro espetáculo.

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Prima Ballerina, A primeira bailarina – Edgar Degas

A primeira bailarina poderia ou não ser a primeira. Quem sabe a última, aquela que se esconde em valsas descompassadas ou harmoniosas, notas que saem da alma ou do desespero. A primeira bailarina parece estar voando. Ela realmente voa em saltos e toques certos e perfeitos. O ambiente em torno dela é de todo inspirador e implacável. Parece conduzir a um limite entre a terra e o sonho. As pinceladas fortes, expressivas, marcadamente impressionistas que dão forma a esta delicada e, ao mesmo tempo, forte bailarina são do gravurista, pintor e escultor francês Edgar Degas (1834-1917), que tornou-se famoso por suas bailarinas doces e arrebatadoras. Degas cumpre o propósito impressionista quando reconstrói o real, aderindo às suas infinitas possibilidades, dando vida a uma pintura que antes de tudo sente e faz sentir, buscando o momento da contemplação e do tempo que se dá ao tempo.
Admirar uma bailarina de Degas é embarcar no voo da arte, incerto e fascinante. A vivacidade de seu quadro traz uma sensação de liberdade, uma delicadeza juvenil e uma maturidade natural. A primeira bailarina acordou poesia, só pode ser poesia para transmitir gratuitamente, a quem o sabe perceber, tamanha dose de sensibilidade e nostalgia. Gosto de Degas pois quando da primeira vez que o vi foi como se aprendesse a sonhar. Degas nos ensina a sonhar o sonho que toda menina carrega: o sonho de ser uma linda e delicada bailarina, protegida de todos os perigos, cercada de belos vestidos e extremadas sensações, acorrentada ao ritmo da dança, alheia ao controle da vida, entregue à coreografia do amor, do verdadeiro e grande amor, sonhado por toda menina-bailarina ou bailarina-menina.

Porque o quadro e o meu momento me fizeram lembrar estas linhas…

Suave, serenamente,
Eu hoje acordei poesia.
Passei o meu dia versando você,
olhava em seus olhos,
distantes dos meus,
e a cada olhar,
por demais atento,
brotavam, em pensamento,
versos que seriam seus.
Mas antes que eu conseguisse
definir-te em versos,
com um simples gesto,
mero falar,
conseguiste de súbito
meus versos quebrar

Cida Villela

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