A guerra é oficial, acontece em plena democracia. A polícia paulistana é uma das que mais matam no mundo. Mata mais que os “bandidos” e ainda levanta e emposta a voz para falar de suas “corajosas ações” em defesa da segurança pública.
Segurança pública. O que é a segurança pública? Matar a todo e qualquer custo, mentir para a população, os fins justificam os meios, olho por olho dente por dente. Pois é, estamos em guerra e esses são os lemas de nosso Estado falido.
Essa é a triste, porém verdadeira, constatação de nossos tempos. Somos um país regado por um cada vez mais amargo e venenoso caldo de violência. Somos violentos desde a nossa descoberta, com o genocídio dos índios. Somos violentos desde a nossa colonização, com a exclusão do povo e com a escravidão. Somos violentos desde a nossa independência, com a herança de uma modernização conservadora onde realmente não há superação, apenas eco e retrocesso.
Somos violentos desde nossos anos de Ditadura Militar, com as tantas mortes injustificadas, com os muitos corpos desaparecidos, com os suicídios forjados, com as torturas vis. Com o ódio à liberdade, à igualdade. E desde então, seguimos desiguais, vivendo uma ilusão de progresso e felicidade.
Não que o Brasil esteja condenado ao destino da modernização conservadora, à desigualdade perpétua, a não ser feliz. Dirão muitos: mas nós somos muitos felizes, Deus é brasileiro, o país é o do futebol, temos o carnaval, temos as mais belas praias. Sim, somos tudo isso.
Mas não somos só isso e, mais do que tudo, somos dois. Os dois Brasis de Euclides da Cunha são reais e falam todos os dias, nunca falaram tão alto, gritam extenuados, mostram-se em cada injustiça, em cada rosto de criança sem esperança, em cada morte sem explicação, em cada mito repetido a uma população que, iludida, ainda se crê protegida pela mesma violência que a impede de ser livre, realmente livre.
Assim, eu pergunto. Somos livres? Somos uma democracia? É democrático o estado que mata de forma injustificada, como fez a polícia de São Paulo? Que expulsa a população de suas casas, como fez a mesma com o caso Pinheirinho? Que engana a população, como fez o governador do Estado ao dizer que os fatos serão apurados depois de elogiar a ação com uma frase típica de líderes autoritários: “quem não reagiu está vivo”?
Onde está a diferença entre a vítima e o algoz? Por isso digo, estamos em guerra e, o que é ainda pior, ela não acontece mais porque o estado é de exceção, como acontecia na época da Ditadura, onde se matava e não era preciso dar muita explicação, um simples “tudo será apurado” e uma história inventada já resolvia a questão. Não havia imprensa livre, nem investigação.
Agora, em tese, viveríamos em um estado democrático. A imprensa é livre, os poderes estão aí para fiscalizar uns aos outros, a voz do povo é soberana, o governo é do povo. Ocorre-me pensar em Walter Benjamim quando ele diz em suas Teses sobre o Conceito de História que o estado de exceção no qual vivemos é a regra e que a verdadeira revolução seria aquela que instaurasse o real estado de exceção, onde não haveria mais a dominação de uma classe por outra.
Não vivi em uma Ditadura e não posso dizer o quanto Benjamin estaria sendo injusto com as nossas tão estimadas liberdades, arduamente conquistadas, no entanto, uma coisa creio que posso afirmar. Se hoje a realidade brasileira é bem melhor do que aquela dos anos de chumbo, ela, sem dúvida, está impregnada com a herança de violência, injustiça, repressão e desigualdade deixada não só por eles, mas por toda nossa história.
A mancha de sangue ainda cheira e cheira mal. E agora, lembrando Clarice Lispector, ainda precisamos de treze tiros para matar, para extirpar todo nosso ódio. Um não é suficiente. E assim morrem meninos nas esquinas pobres, filhos, mulheres, bandidos… Assim morremos todos nós, um pouco por dia, presos em nossa liberdade.