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Posts Tagged ‘memória’

Casa Velha

Girl with a Fig Leaf 1947 by Lucian Freud 1922-2011

Lucian Freud, Garota com folha de figo (1947)

Aquela fileira de flores
que talvez tenha me feito sombra.
Quanto ainda lembro de sua beleza
das flores azuis na entrada
o quintal vasto e perigoso
com buracos que pareciam
ir ao outro mundo.

A larga varanda vermelha
e a janela grande da cozinha
em cuja mesa eu um dia
me sentei cansada.

O cansaço novo
daqueles dias.
Que se ia no pedaço
de areia quente
onde surgiam meus mundos.
Que se perdia no longo tapete
onde eu inventava uma
nova casa dentro da casa.

O chão ainda novo, reformado
que eu pisei por poucos anos
hoje por novos pés pisado.
Oh que saudade não tenho
dessa sobrevivente casa paterna
a pulsar nos retratos guardados.

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Título da Obra: Estudo: Mãos, 1948 Data de Aquisição: 1973 Técnicas e Dimensões: nanquim e aguada sobre papel, 31 X 24,8 Procedência: Doação, Família Tarsila do Amaral

Elas têm fugido de mim
na correria quente dos dias
ardidas e fartas
saturadas de tantas manias.

Têm ido para onde não sei buscar
no fundo oco das horas
ociosas e incompletas
ausentes das minhas claras vigílias.

Que eles assim também se fossem
é o desejo que grita na alma
mudos e covardes
sem nenhuma coragem de voltar.

Mas como tudo que resiste
no chão feito de pedras
agudos e grandes
insistem no seu vil lugar.

Vivos quando parecem mortos
ainda que não queira falá-los
eles escorregam por entre esses dedos
de calor inchados.

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Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

Paul Gauguin, Tahitian mountains, 1893

(16)

O homem e o seu lugar. Suas estradas, seus becos e esconderijos, os lugares onde passou, onde amou, onde viveu suas mortes. Ao homem fala o seu lugar e ao seu lugar o homem fala. Sempre a lembrança de suas paisagens feito folha sempre destinada à letra, sempre o calor daqueles anos.
Antes de morrer, era esse o último pedido do amigo de meu pai. Voltar aonde começou. Uma terra de cercas, muito pó levantado, pouca gente, tanto silêncio. Um lugar parado, sem movimento, exceto o lento cair das folhas, exceto o vagaroso suspirar do vento. O amigo de meu pai queria ver o seu lugar, para só ali viver a última e derradeira morte.
Ele ainda contou, quase suas últimas palavras, que quando as montanhas verdes o olharam de novo, um frio percorreu todo seu coração, as mãos suaram, os olhos ficaram de repente molhados, embaçada a paisagem. O cheiro lembrava o primeiro almoço farto. A casa trazia suas brincadeiras. Os retratos esculpiam a sua inocência. Tudo reverberava seus erros.
Meu pai disse que ele morrera feliz. O peso da morte, quando voltamos para nosso lugar, teria contado o amigo de meu pai, se ameniza diante de tantas mortes que ali há. As primeiras roubando o espaço das últimas, concedendo o perdão a todos os pecados.
E ele olhou pela última vez o horizonte da estrada por onde tantas vezes passara.

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Tarsila do Amaral, Estudo: corpo de mulher (Incompleto)

Em corpo reto na posição encostada
verte-se sobre mim uma angústia
que insiste em estar e não passa,
como uma sensação de perda de tempo

nada.

Meu corpo imagina um corredor,
as costas em suor me molham,
as coisas todas me revelam uma dor
e eu não sinto nada mais além dos livros

que me olham.

Há pouco provava do doce ar,
do fresco brincar na vida cor-de-rosa,
mesclando-os com as imagens de um lugar
que na noite escura ainda chora.

————————————

Ainda desce a tarde calma e nova,
derramando um estado de cores
a espreguiçar o tempo que volta
quase como o sangue que de mim

brota.

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“Deus do céu não há nada no mundo como a natureza as montanhas selvagens e então o mar e as ondas se precipitando e então um campo belo com plantações de aveia e trigo e toda sorte de coisas e todo o belo gado perambulando isso faria bem ao coração da gente ver os rios e lagos e flores de toda sorte de forma e perfume e cor surgindo até mesmo dos fossos primaveras e violetas isso é natureza […] quando eu era uma mocinha onde eu era uma Flor da montanha sim quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me beijou debaixo do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como um outro e então eu lhe pedi com meus olhos que pedisse novamente sim e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços à sua volta sim e o arrastei para baixo sobre mim para que ele pudesse sentir meus seios todos perfume sim e seu coração disparou como louco e sim eu disse sim eu quero Sim”.

James Joyce, Ulisses (p. 838, 839)

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Oleg Kozak

“Os lugares que conhecemos não pertencem sequer ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não passam de uma delgada fatia em meio às impressões contíguas que formavam nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é mais que a saudade de determinado instante ; e as casas, os caminhos, as avenidas, infelizmente, são fugitivos como os anos” (p. 534)

“Mas se esse desejo de que me surgisse uma mulher ajuntava aos encantos da natureza, para mim, algo mais exaltante, os encantos da natureza, em troca, aumentavam o que poderia haver de muito estrito no encanto da mulher. Parecia-me que a beleza das árvores era ainda a sua, e que a alma desses horizontes, da aldeia de Roussainville, dos livros que lia naquele ano, o seu beijo me revelaria; e minha imaginação, retomando forças ao contato da sensualidade, e minha sensualidade se espalhando por todos os recantos da minha imaginação, faziam com que o meu desejo não tivesse limites” (p. 202)

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Henry Matisse, Mulher lendo

No lento sussurrar
da saudade, dúvidas
mil invadem. Mas
o futuro, este não
é mais que miragem.

Os interiores são regiões abruptas da alma. Fétidas. Expulsam bom senso e as demais moralidades, servem-se fartamente de suas próprias leis, enlamam-se em misérias e toda sorte de perversões. Cinzentas, avermelhadas, negras, suas variações são múltiplas, suas delicadezas profundas, sua sensualidade quente e rasteira. Os interiores não são para qualquer um. Solitários e úmidos, às vezes, ou cheios de barulho e melancólicos quando sofridos por qualquer onda de frio. Pacientes, esperam pela mudança que nunca vem, pelos ciclos eternamente a repetirem-se. Porque é dos interiores a mudança que nada muda, o silêncio perpétuo que só na forma de grito se escuta.
As histórias ali são muitas. Contadas e recontadas servem para alimentar sua cadeia interminável de misérias e vãs piedades e inspirar boas condutas ou potencializar as más. Foi assim que em uma pequena vila completamente esquecida e desencontrada, plantada nos interiores do Brasil, ouviu-se dizer de duas mulheres que viviam juntas. Uma era avó e a outra sua neta. A primeira já era mulher havia um bom tempo, contava já os seus sessenta anos, enquanto a segunda apenas começava a trajetória nem sempre fácil de ser mulher. Viviam em casa simples, pequena e mofada. Antiga, a construção nunca mudara e esboçava nos trincos nas paredes as marcas do tempo, na tinta já descascada os humores dos climas quentes daquelas paragens e, no cheiro forte e denso, os sinais de solidão e do esquecimento.
As duas nunca saíam. Nunca tinham visto nada que não fosse a vila onde viviam. A velha lhe decorara os campos secos e as ruas sem árvores, onde as poucas e espalhadas casas se expunham ao sol forte de quase todos os dias ou às chuvas que vinham de vez em quando pelas beiradas. Nunca vira o mar ou outras paisagens, montanhas só as imaginava, metida que estava no meio de toda aquela planície que nunca mais acabava. Só conhecia estradas retas, rios tímidos e acanhadas árvores. Mas não tinha vontade de conhecer outras geografias. A sua lhe bastava. E bastou-lhe tanto que ela agora passava os dias deitada em um sofá que a prima Dinorá trouxera de Paris, todo moderno, cheio de luxos e cores, vindo do exterior, a contrastar com aquele pedaço de vida que se comprazia em descansar sem estar cansada, em olhar para tudo sem olhar para nada. Um interior seco, tão seco como o que a abrigava.
Dona Marina enlouquecera sem que ninguém nunca lhe soubesse propriamente a causa. Ela inclusive parecia mais sã do que todos ao seu redor, mas, ao mesmo tempo, parecia mais louca do que todo um hospício. Desgostara-lhe a vida, era o que diziam as comadres vizinhas, e da depressão e fastio veio a demência, a fragilidade, a enorme dependência, a infantilização quando velha, a humilhação nem sempre percebida, a insegurança de quem nunca esteve onde gostaria. Camas variadas a abrigaram antes de chegar a esse sofá vindo de tão longe, chique e pomposo, muitas delas bastante sujas e ensebadas. Marina quando chegara ao vilarejo, ainda menina, logo caíra nas graças da prostituição, que da capital rapidamente se espalhava rumo ao interior. A mãe pusera-se ensandecida depois que o pai a abandonou por uma dessas mulatas quentes e oferecidas. Nesse meio tempo, Marina tornou-se protegida de uma mulher com excessivo cheiro de perfume barato que era dona de uma escondida e quase imperceptível casa de mulheres que a educou e também a iniciou nos prazeres da vida. Eulália, que assim se chamava a benfeitora de Marina, apresentou à então moça os homens mais abastados da região, políticos da vila e das cidades maiores que a cercavam, padres, advogados, professores, empresários, velhos, moços, artistas, homens vazios e cheios de espírito, homens sedentos de amor e outros sequiosos de vícios.
Por um dos tantos homens apaixonou-se, já sabendo que essa seria a grande desgraça da sua vida. Ela ia por essas épocas com vinte e tantos anos e era ele da mesma idade. Grávida e abandonada, Marina continuou vivendo sob os favores de Eulália e continuou trabalhando enquanto pode, mesmo com todos os riscos. Muitos anos depois, viu escorrer-lhe por entre os dedos a filha que, assim como ela, seguira o mesmo destino. Muitos ao comentar o episódio diziam que não podia ser diferente já que ainda na barriga da mãe a filha já escutava os gemidos dos prazeres forçados e o cheiro dos ambientes mais libertinos. Fugida com um aproveitador de quinta, a única filha de Marina foi morrer em um desses hospitais que mais parecem cortiços espalhados por esses interiores sem fim, e deixou a neta que agora acompanha a avó miseravelmente ensandecida. Marina prometera para si mesma que a neta nunca teria que se deitar com quem ela não queria, sentindo aquelas barrigas encharcadas de suor, aqueles bafos de pinga barata, aquelas mãos ásperas, aquele gozo doentio e alucinado ou correndo o risco de quem sabe apaixonar-se por homens que nunca a mereceriam de fato.
A neta seria diferente. E realmente fora. Mas como de destino não se foge, a diferença veio lhe ser fatal.
Nina desde sempre enfastiara-se daquela cena sem mudanças, de uma imobilidade mórbida, inócua, ofuscada. Quando a mãe a deixara, ela tinha uns dez anos de idade e a avó já alcançava os cinquenta. Nesse tempo já não exercia mais os antigos ofícios e não podia mais contar com Eulália que falecera. Vivia de trabalhos de costura e de ajudas de antigos clientes que fizeram-se amigos por uma razão ou outra. Muitos sempre buscaram em Marina apenas uma companheira que lhes desse conselhos, talvez, essas coisas só sejam acreditadas por corações ingênuos, mas eis que elas existem, e muitos dos amigos de Marina até hoje a ajudavam em troca de pequenas palavras que lhes provocavam grandes efeitos na alma.
Os primeiros dez anos passaram-se assim muito bem. Até que a avó começou a perder o juízo e ficar naquele estado que há pouco descrevemos. Nesse tempo, a existência compartilhada com uma avó da qual não se podia extrair qualquer tipo de certeza em relação ao estado mental e temperamento, apenas reforçara o imenso tédio que as regiões interioranas causavam a Nina. Alguns fatores, no entanto, atípicos para a solidão e isolamento de sua existência fizeram dela tudo que, por causas naturais, ela não viria a ser.

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