Não vou dispensar muitas palavras para falar desta bela novela do escritor chileno Roberto Bolaño, mesmo porque, a forma sintética e, ao mesmo tempo, suficiente com que ele narra os acontecimentos que compõem a sua narrativa mostra que não é preciso dizer muito, em certos casos, para dizer de algo ou contar uma história.
A novela “Estrela distante” é a continuidade de outro projeto literário de Bolaño, “A literatura nazista na América”, mais propriamente do último capítulo em que Bolaño apresenta a figura de Ramírez Hoffman, poeta e torturador à serviço de Pinochet nos anos da ditadura chilena.
A figura do homem que lê poesia ao mesmo tempo em que causa dor e sofrimento é quase que dissecada em “Estrela distante” na figura do personagem Carlos Wieder. Não por acaso “wieder” em alemão quer dizer justamente “outra vez”, uma espécie de etorno retorno desses personagens sombrios, duplos, que sempre têm gestos dúbios, indefiníveis, sorrisos discretos.
Wieder é de início um estudante com nome Ruiz-Tagle que participa de oficinas de poesia junto com outros jovens do Chile ainda sob o governo de Salvador Allende. A história começa nos anos que precedem o golpe de 1973 que leva Pinochet ao poder e é em meio à atmosfera negra e marcada por diversas perdas da ditadura militar que o caráter sombrio de Wieder aos poucos vai se revelando aos colegas próximos que conviviam e não conviviam com ele ao mesmo tempo.
Podemos pensar na novela como uma abordagem bem feita de um personagem, apresentado aos leitores da mesma forma misteriosa como ele se deixava ver pelos outros. Um psicopata, um assassino, um poeta, um aviador que escreve seus versos de morte em pleno ar. Não se sabe muito bem quem são essas pessoas que carregam em si a força destruidora e amarga do nazismo. A autoridade, o gosto em matar, um quase prazer doentio, e uma espécie de relação não muito bem resolvida com a arte.
Só pela apresentação profunda desse personagem a novela de Bolaño já vale, mas ela tem méritos também na linguagem, clara e direta, no texto fluente com um tom de investigação criminal e, principalmente, na sensibilidade das pequenas histórias, dos pequenos personagens que vão compondo o cenário da história maior.
Aos poucos, a mensagem principal do romance parece ser a de que figuras como Carlos Wieder e tempos como o de Pinochet no Chile reforçam, na sensibilidade das pessoas que ainda a têm, o sentido da palavra “nunca mais”.
O que é curioso, pois se a ideia do eterno retorno e do fantasma do nazismo acompanha a narrativa, é pelas mãos de Wieder e de atores a serviço de ditaduras assassinas, que a sensação do “nunca mais” atravessa a vida de jovens, intelectuais e poetas que perdem pessoas queridas, que perdem a sua própria identidade, que sentem, com a mais delicada das tristezas, que nunca mais verão aquela jovem que fazia versos tão bem.
E tudo fica mesmo como uma estrela distante. O nazismo, seja ele qual for, divide vidas, transforma o tempo, cria seus personagens fantasmas, é capaz de unir ideias opostas como a do “outra vez” e a do “nunca mais” e, nisso, ele é como uma metáfora, ou, como a própria poesia que, dos céus à terra, palpita neste tocante romance.
“Depois voltou a afundar. Nesse momento também não fechou os olhos: moveu a cabeça com calma (a calma de um anestesiado) e buscou com os olhos alguma coisa, qualquer que fosse, mas que fosse bela, para retê-la no momento final. Mas o negror vendava qualquer objeto que pudesse descer junto com seu corpo até as profundezas, e ele nada viu. Então, sua vida, como se costuma dizer, desfilou diante de seus olhos como num filme. Alguns trechos eram em branco e preto e outros em cores. O amor de sua pobre mãe, o orgulho de sua pobre mãe, a exaustão de sua pobre mãe ao abraçá-lo à noite, quando tudo nos vilarejos pobres do Chile parece estar por um fio (em branco e preto), os tremores, as noites em que urinava na cama, os hospitais, os olhares, o zoológico dos olhares (em cores), os amigos que compartilham o pouco que têm, a música que nos consola, a maconha, a beleza revelada em locais inverossímeis (em branco e preto), o amor perfeito e breve como um soneto de Góngora, a certeza fatal (mas cheia de raiva dentro da fatalidade) de que só se vive uma vez. Tomado de súbita coragem, decidiu que não ia morrer. Conta-se que disse é agora ou nunca, e voltou à superfície. A subida lhe parecia interminável; manter-se à tona, quase insuportável, mas conseguiu. Naquela tarde, ele aprendeu a nadar sem braços, como uma enguia ou uma serpente. Matar-se, disse, nessa conjuntura sociopolítica, é absurdo e redundante. Melhor se tornar um poeta secreto”. (p. 72)
“Às cinco da manhã, adormeci no sofá. Fui acordado por Angélica, quatro horas depois. Tomamos café da manhã na cozinha, em silêncio. Ao meio-dia, elas enfiaram duas malas no seu carro, uma Citroneta 1968 verde limão, e partiram para Nacimiento. Nunca mais as vi”. (p.23)
“Mas não são eles que irão se esconder. Eles são os que procuram os que se escondem. E junto com eles entra a noite na casa das irmãs Garmendia. E quinze minutos depois, talvez dez, quando se retiram, a noite volta a sair, subitamente a noite entrava e saía, eficaz e veloz. E os cadáveres jamais serão encontrados, ou sim, há um cadáver, apenas um cadáver que aparecerá anos depois numa fossa comum, o de Angélica Garmendia, minha adorável, minha incomparável Angélica Garmendia, mas somente esse, como que para provar que Carlos Wieder é um homem, e não um deus”. (p.28)