Nas primeiras horas do dia, ainda levemente adormecida, eu me pus a imaginar a copa daquelas árvores que, logo ao abrir a janela de meu quarto para receber a fresca luz da manhã, invadiriam meu rosto com seu verde vibrante e sua promessa de calma e eternidade. Logo as pensei floridas, amarelas como costumeiramente ficavam, contendo em si um pouco do calor e da vida da estação primaveril que as fazia desabrochar. Como me deixa entusiasmada a primavera! Não sei se por suas cores variadas, se por suas formas delicadas, se pelos cenários de devaneio que suas paisagens docemente sempre me reservam, ou se pela sua sempre renovada promessa, ou se por tudo isso. E meu dia começava…acompanhando os sons harmônicos e distintos que vinham de pássaros que eu não via, mas que, ao escutar, profundamente os acolhia.
Os compromissos do dia me acordaram de uma noite bastante longa, povoada de lembranças. Acordei com dificuldade, tomei do relógio e ao colocá-lo já percebi como era tarde. Apressada, fui em direção ao supermercado. Não havia outro dia e quando a ideia em mim se fixava não havia noite mal dormida, tampouco um tempo cinzento e desconfiado, como o que então fazia, que a tirava de meus planos mentais.
Não me sentia propriamente mal, embora ligeiramente cansada, e tal estado não me parecia dos melhores frente à tarefa da economia doméstica a que eu me destinava. No semáforo lotado parei como de costume e olhei com olhos esfumaçados os carros passando sem parar. Quase não tinha tempo de distinguir os rostos. Incrível! As pessoas escondidas dentro destas “carruagens do infinito”, tão habilmente lhes privando do contato com o mundo.
Pararam. O silêncio dos motores moveu minhas pernas: instinto de urbanidade. Ao chegar, tomei o carrinho de compras e não pude deixar de pensar na semelhança e também na diferença entre este que usamos para depositar produtos que nos mantêm vivos e sadios, corpo e casa em ordem, e aqueles nos quais quase cegamente nos depositamos para vencer as distâncias, travar o conhecimento das presenças e dos lugares.
Começava sempre pela primeira prateleira. Shampoos, condicionadores, absorventes, produtos de beleza, sabonetes, pasta de dente, gel, cremes para o corpo, pentes de cabelo, esmalte para as unhas, os cuidados do corpo e os papéis higiênicos. Olhei bem, mas não havia papéis de carta. Era deles que eu precisava. Que eu realmente precisava. Os outros já estavam lá. Todos eles. Os produtos. Alguns funcionários apenas os colocavam na prateleira, mas eles pulavam de suas mãos prontinhos. Quanta coisa deveria existir em um simples shampoo, em um esmalte de unha, e nada disso aparecia aos meus olhos. Tudo já estava pronto e, como o mais perfeito dos feitiços, aqueles objetos não iriam se decompor nas milhares de mãos e horas que os produziram, tampouco nas árvores, frutas, nas matérias-primas da natureza que o fizeram chegar aqui nesta forma que têm agora, permaneceriam encantados ainda que meu relógio marcasse meia-noite.
Como os preços dessa parte eram elevados! E também nunca me foi revelado o porquê. Talvez tenham dado mais trabalho, talvez a matéria-prima seja mais cara, ou, simplesmente, a carga simbólica em torno deles justifique o valor com que são trocados pelo meu dinheiro gravado no cartão de crédito. Enfim, muito pensamento pra pouco tempo…
Tomei coisa e outra rápido e parti para as frutas. Belas, coloridas e mais baratas. Não podia deixar de me incomodar a atmosfera em que elas se amontoavam. Umidificadores espalhados pelo teto tentavam reproduzir a atmosfera dos campos e ambientes onde elas naturalmente crescem. Era uma boa propaganda. Nas paredes podiam-se ler pintadas em cores vivias frases do tipo: “fresquinhos todo dia”!
Era importante que eu comprasse muitas dessas peças “fresquinhas”. Não só pelo sabor, mas por pura questão de necessidade. Orgânica e vital. O estômago que já não ia bem há tempos e se aproximava de completos destroços e ruínas agradeceria essa alimentação mais, digamos, “fresquinha”.
Pulei a fila dos congelados em consideração a ele (ao estômago). Nada de sabores artificiais. “Como se os anteriores não fossem”. Mas há coisas que é melhor nem pensar, ou disfarçar, e eu tentava esquecer os pesadelos da noite e o tédio das tarefas do dia de uma mulher sozinha que, depois do supermercado ainda teria que faxinar a casa e separar a roupa que, sem falta, deveria esfregar-se corajosamente no tanque para depois girar freneticamente na máquina no dia seguinte.
Não pude deixar de notar os ovos de páscoa que formavam uma espécie de telhado de papel colorido sobre minha cabeça, e as crianças atirando-se a eles. Ávidas e encantadas. Enfeitiçadas menos pelos sabor do chocolate e mais por alguma outra coisa que vinha junto com ele. O papel, as cores, nunca soube o que era essa “outra coisa”.
E não só os ovos de páscoa, mas muitas outras coisas tinham “a outra coisa”. As crianças pulavam em direção a eles, se jogavam dos braços da mãe e imploravam: “compra, compra! Compra mãe!”. Logo se deitavam no chão, esperneavam, desenhavam um sofrimento existencial tão primitivo que nem sei se chegava a um sofrimento, talvez mero grito diante dessa vida em que se deseja, em que se quer, em que a lágrima e o sorriso possuem o mesmo gosto, a mesma seiva divina.
Mas eu fugira do exercício das compras. Tinha esquecido alguns itens da minha lista e o relógio logo tocaria aquela música estridente, e que eu realmente adorava como uma sonata de Mozart, a música quase monotonal do meu despertador a me lembrar que o tempo daquela tarefa já tinha se ido e que logo eu deveria estar chamando o táxi, indo de volta para casa e novamente programando o relógio para a nova tarefa do dia.
Corri pelas prateleiras diante dessa iminente ameaça. Tudo menos ouvir a música! Precisava terminar antes, eu realmente precisava terminar antes. E assim foram leites, sucos, danones, macarrão instantâneo, pacotes e mais pacotes, o instantâneo tem tudo haver com o mundo moderno, pensei. Bobagem! Enfim, queijos, massas, molhos e um vinho, por que não?
A prateleira dos vinhos tinha lá as suas peculiaridades, como a das frutas. Uvas de plástico caíam de um telhado planejado para cobrir quem passasse e criar toda uma atmosfera…O mundo da criação, as uvas de plástico, as mil e uma garrafas de vinho, tantas para escolher, tanto, mas tanto. Nada e menos nada, menos nada, nada.
Embriagada pelo cheiro preso nas garrafas, pelas uvas que nunca seriam naturais, posto que eram de plástico, nada mais que plástico, minha cabeça virou, revirou, esmagou o travesseiro, o encharcou de lágrimas… Por que a visão daqueles objetos tinha que voltar? As peças do meu criado mudo, do meu primeiro quarto em que vivi meus primeiros anos. Tão tristes. Eu sentia saudade delas, eu que me perdera delas, que não sabia mais como encontrá-las, sequer onde estavam, o que teria sido feito delas… Uma fotografia tinha me ajudado a lembrar, embora eu já lembrasse. Eram algumas peças delicadas de porcelana, um urso pintando um quadro, um porta joias cuja base era um coração e cujo topo imitava as extremidades de um telefone. Onde estavam eles agora, o que teria sido feito deles? De novo eu me perguntava e sentia uma profunda tristeza por os ter perdido, por não os ter levado comigo. Eles pertenciam à minha infância, à minha memória, e nem isso mais eu tinha. No bolso apenas um impotente cartão de crédito que serviria para levar pra casa tudo aquilo que eu juntara sem perceber naquele inútil carrinho. E era como um verdadeiro sufoco, amortecido e, ao mesmo tempo, nulo esse renunciar aos pequenos adornos da vida.
Mãos cruéis os teriam tocado, jogado em qualquer lixo para engrossar as montanhas dos resíduos que jogamos fora, que não valem mais nada. Mas como podem dizer isso? Eles valiam, as coisas valem em si, têm vida, como não? E eles tinham em si a minha vida, e eis que tão longamente adormecidos de repente voltaram, quando eu estava mais velha, quando tudo estava mais velho, quando eu já tinha enterrado aquele quarto e já passara por tantos outros em solidões sucessivas e renovadas, que não se curavam, fossem quais fossem as paredes, seus enfeites, seus quadros.
Coisas que eu não tinha mais. Como naquele dia em que senti uma tristeza tão grande vendo aqueles búfalos sem poder fazer nada. Em que vi a tragédia da guerra desfilando ao meu lado, toda a tragédia da guerra. Privados de seus vastos campos, belos, regados de sol, coloridos pelas marcas das estações, esse animais grandes, fortes, de olhos tão meigos, eram agora simples transportadores de carga, sujeitos aos açoites mesquinhos daquele soldado que me dava náuseas e que os maltratava dizendo que os homens também não eram tratados de forma diferente. Pra que ter piedade? Eu a tinha. Não por eles somente, mas por mim. Impotente, enjaulada, condenada a ver seus olhos tristes e não poder fazer nada, a ver os meus olhos cansados e mesmo assim ter de resistir, ler, trabalhar pela causa, pelo partido, a causa que eu intimamente poderia ter abandonado. Mas onde estava meu íntimo?
Se eu pudesse escolher… todos sabem. Eu seria feliz em alguma casa de campo, com um dos meu amores, o ávido revolucionário ou meu menininho sonhador, ou sozinha, ou com Mimi, mas seria feliz apenas olhando os animais, cuidando das plantas, multiplicando meu herbário. Leria grandes obras. Jamais abandonaria Goethe, Shakespeare, meu tão amado Tolstoi, nem tampouco as músicas, Beethoven, Mozart, Schubert, quem sabe aprenderia a tocar piano e não precisaria mais sonhar aquele sonho em que eu cortava as pontas dos meus dedos para desculpar-me de que não poderia tocar aquela bela sonata.
Viveria das primaveras, esperando pelo calor do verão. Andaria pelos campos, amaria, poderia dedicar-me à família. Não teria deixado de ver meu pai antes que ele morresse, como deixei por falta de tempo, pelo meu compromisso de salvar a humanidade, de trabalhar pela felicidade universal, ah, pela liberdade.
E hoje sou como esse búfalo, estou sem ela, sofro açoites cruéis, de meu estômago, de meus nervos, e afundo-me ainda mais em uma tristeza muda, sem nome. Quando penso, como ele, nas minhas verdes e viçosas pastagens da Romênia, distantes, perdidas em algum lugar…
Mas me mantenho tranquila e alegre, pois assim é a vida, não é. Temos de aceitá-la com tudo de bom e ruim que ela trouxer, entender a beleza e talvez a necessidade de suas tempestades, viver a doce expectativa de um dia de sol. Sempre tranquilos e alegres…
Prestar atenção nas paisagens, nos silêncios, nas vozes que vêm da rua. Lá, naqueles dias sem liberdade, a solidão era tanta que as vozes de fora me falavam nitidamente, e eu passava a acompanhá-las e também a esperar por elas. O latido do cachorro me fazia lembrar de uma vida tranquila, de crianças gritando dentro da casa, do marido fumando na janela, da mulher lhe preparando a comida. O choro de um bebê me fazia recordar meus próprios choros noturnos, minhas insônias frequentes, esse gritar diante de um nada, esse gritar pela existência, acalmado com três ou quatro tapinhas.
Eu e meus sonhos, minhas vontades simples. Eu e a causa operária. Quais serão os motivos de uma vida? Dziodzio passearemos ainda de barco, verdade? Sinto que não tenho em nenhum lugar o meu canto, que não existo em lugar algum e não vivo como eu mesma. Mas os sonhos, quantos eu fiz, quantos eu tive. Como contei os dias, preparei a casa, comprei móveis…Sempre esperava pelo meu momento, por alguma chegada, mas vivia pela revolução, também ela uma espera, entre eu e ela. Mas devem ser assim as grandes causas, elas tiram um pouco de nós, nos convertem em sonhos, mas de repente são mesmo nós, valem a pena e mesmo derrotadas vencem, por um momento, por uma frase, por uma lágrima verdadeira, vencem nesta terra onde cadáveres se movimentam sem perceber que estão mortos.
Nunca me será permitido? Nunca? E a essas figuras que pensam, que ousam parar no meio da multidão? Que se retiram… Aos que se sentem perdidos e repousam as mãos sob o queixo e simplesmente se entregam a uma longa e por vezes triste reflexão. Se pararmos para olhar seremos todos tão tristes e profundamente felizes. Não tocados por uma tristeza da impotência ou da resignação, mas pela tristeza que percebe como um mundo belo, tão belo, também serve de palco para outro tão egoísta e mesquinho.
Como aquele senhor já velho, guarda da prisão, que soletrava as notícias policiais sem sequer entender propriamente o que vinha dizendo, pelo simples prazer da literatura. Ou aquele velho que simplesmente canta canções já antigas, ninguém presta muita atenção, talvez ele também não entenda muitas dessas canções, ou do mundo, ou da vida, mas ele já viveu…viveu…
Permanecer sendo um ser humano. Ser humano é o mais importante de tudo. E isso significa: ser firme, claro e alegre, sim, alegre apesar de tudo e de todos, pois choramingar é ocupação para os fracos. Ser humano significa atirar com alegria sua vida inteira “na grande balança do destino” se for preciso, mas ao mesmo tempo se alegrar a cada dia claro, a cada bela nuvem, ah, eu não sei dar uma receita de como ser humano, eu só sei como se pode sê-lo […] O mundo é tão belo, com todo o seu horror, e seria ainda mais belo se não houvesse nele os fracos e covardes.
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