Cena do espetáculo A Alma Boa de Setsuan
Dos melhores textos do dramaturgo e escritor Bertold Brecht um deles, pela força dramática, tom de crítica e denúncia social, é sem dúvida alguma A Alma Boa de Setsuan que está em cartaz no teatro da PUC-SP, o TUCA, em São Paulo. A peça que inicialmente iria ficar em cartaz apenas por três meses já está sendo apresentada há cerca de um ano e vai encerrar definitivamente a temporada de apresentações em julho. Tanto tempo em cartaz com certeza de público lotado em quase todas as apresentações só pode ser sinal de uma peça que encanta e surpreende quem vê do primeiro ao último minuto.
De fato, A Alma Boa de Setsuan é de uma beleza completa e pungente capaz de emocionar no mesmo movimento em que leva à reflexão e reconhecimento de nós mesmos. Fora a inquestionável qualidade do texto, a representação dos atores é um capítulo à parte. Denise Fraga está simplesmente completa no papel da protagonista da peça, Chen Tê, a alma boa que reside no pequeno vilarejo de Setsuan. Chen Tê é uma prostituta que vive querendo ajudar a todos e, nesse caminho, sempre acaba por prejudicar a si mesma. A saída que ela vê para resolver essa questão é se disfarçar de um tal primo, Chui Ta, que incorpora todas as características que Chen Tê não tem.
Tem-se, portanto, um jogo de ambivalência muito característico em diversas peças teatrais nas quais um mesmo personagem se faz passar por uma outra pessoa e vive duas vidas ao mesmo tempo, perfeita metáfora para revelar os dois lados de cada um de nós. No caso da peça de Brecht, um lado é ingênuo, aquele que cede, perdoa, ama, está sempre disponível e deseja apenas fazer o bem, e o outro é o lado que castiga, que é duro, firme e astuto. A personagem de Denise Fraga convive com os dois lados dentro de si e os representa na peça de forma artisticamente perfeita.
Cena do espetáculo A Alma Boa de Setsuan
Além de Denise, outros grandes nomes do teatro nacional compõem o elenco como Ary França que, na peça, incorpora o papel de uma espécie de mensageiro divino que sai em busca de uma alma boa que seria a última esperança para o mundo. Antes de refletir sobre toda mensagem transmitida pela peça, vale ressaltar, já que se fala de atores, que o trabalho do ator nesta peça é completo e harmônico.
Todos têm um trabalho de corpo que confere a cada um deles um estilo próprio capaz de levar a plateia a risos e reações diversas sem que sequer uma palavra seja dita. Esta se envolve apenas pelos gestos dos atores, pelos detalhes da interpretação, por aquela força muda que alimenta a potencialidade das palavras sem a qual estas últimas não são nada. O cenário, o jogo de luzes, os detalhes dos objetos, das roupas, tudo respira de forma harmoniosa, contribuindo para causar uma sensação de prazer e completude diante da manifestação pura e sublime da arte.
O segredo de um grande espetáculo está na combinação de diversos elementos que vão desde o trabalho dos atores, luz, cenário, música e silêncio até a qualidade do texto e o potencial que este tem em atingir o imaginário de cada um que assiste ao espetáculo. O texto de Brecht não se sustentaria se não fosse o excelente trabalho de corpo e voz dos atores, a delicadeza dos cenários, os tons e momentos de cada recorte de luz, no entanto, também digo que todos esses elementos não se sustentariam sem a qualidade do texto de Brecht que transpõe os limites das futilidades cotidianas, dos barulhos, das superficialidades, da pressa e encontra sua essência no olhar crítico sobre o ser humano, sobre a sociedade e sobre a própria vida.
Cena do espetáculo A Alma Boa de Setsuan
Em seu texto, Brecht faz pensar em como as almas boas são raras, em como o mundo precisa delas e, principalmente, em como elas inevitavelmente sofrem por seres boas demais. Isso por que, o mundo que as rodeia na maioria das vezes é mal, interesseiro, mesquinho ou simplório e invisível demais para ser notado.
Apesar do pessimismo e da precariedade do caráter humano presentes na peça, ela nos mostra que as almas boas são de extrema importância e que, mesmo que o caminho seja difícil, o mundo, mesmo sem saber valorizar e reconhecer, precisa delas, assim como elas precisam do mundo. Brecht mostra que é preciso encontrar um caminho nesta selva de famintos nas quais fomos simplesmente despejados,que não se deve desistir e que ser bom, apesar de tudo levar a crer que essa é uma característica que não tende a compensar, é o que de melhor podemos fazer a nós mesmos e à nossa consciência.
Afinal, assim como a arte não existe sem paixão, tampouco a vida respira sem uma simples fresta de bondade por mais cansada e desiludida que esta esteja. É por essa fresta que entra luz, a verdadeira luz de um belo espetáculo! Assim como dizem as últimas palavras de A Alma Boa de Setsuan “Deve haver uma saída. Tem de haver”!
Cena do espetáculo A Alma Boa de Setsuan
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