Moça com brinco de pérola, Johannes Vermeer
Conto
Dias ralos e rasteiros. A menina solta bolhas no quintal cheio de luz. São tantas que ela desespera-se na ânsia de todas tocar. Quer atingir cada uma delas, exercer ali o seu poder de interferir no mundo, de perfurar aquela delicada estrutura. Elas dançam em torno dela e ela vai existindo dentro das bolhas. Pintadas pela luz são elas roxas, verdes, amarelas. Desenhadas pelo vácuo do tempo, são elas grandes, médias ou pequenas. Olhá-las é uma festa, uma permanência no presente, um deleite cravejado das mais doces emoções. Mas ela está por demais concentrada em si mesma para poder voltar.
Corre para dentro do quarto. Escuro. As paredes cansadas daquele mesmo ar, ela pensa na solidez que trazem, na firmeza em existir como aquele lugar. Tudo tão calmo, reto, pálido, como ela haveria de ser dali pra frente. Nada de fantasias, arroubos, sonhos, agora era tempo de equilíbrio, interna realização. E ela estava realizada. Sim, estava. Em cima da cama esparramara as últimas joias. Uma opulência! Chegava a ser opressivo de tão belo. Brilhantes, rubis, esmeraldas, colares de ouro, prata, anéis, brincos, pérolas…
As pérolas. Inteiras, circulares, fechadas em torno de si. Por elas a luz não poderia passar como passava pelo interior das bolhas da menina que festejava a vida do lado de fora. Ela estava condenada aos interiores. Deveria cuidar do interior de si mesma, polir-se tal como uma pérola, tornar-se delicada, nobre e sublime como aquela joia, aquele simples quase pedaço de pedra.
Pendurou apenas um dos brincos no fino pescoço e mirou-se enfeitiçada. Tinha consciência de como era bela. O rosto muito bem harmonizado, todos os traços, todas as formas, o tamanho. O tom da pele nem claro, nem escuro. O cabelo castanho com alguns fios dourados do tempo em que andava sob o sol. Os olhos escuros e pequenos, emoldurados por grossas pestanas que lhe davam um aspecto de uma bravura serena, de uma ansiedade doce. A boca grossa e vermelha escondendo os dentes brancos, muito brancos e perfeitos em uma linha contínua e premeditada. Era um escândalo, tão bonita quanto aquele brinco de pérola.
Quando conhecera o marido tinha uma violência burra. Uma vontade de ser que ultrapassava os limites do corpo e do tempo. Era uma alma aventureira, cheia de sonhos, mas tinha um coração ansiosamente delicado que batia em ritmo acelerado, acompanhando o irromper frenético dos insanos e intermináveis pensamentos que habitavam sua mente. Era um fluxo contínuo, era um existir demasiado intenso, ninguém ao seu lado deixava de ser atingido. Saía-se danificado e nada se podia fazer. Tudo nela atormentava, desde a beleza até a profundidade de sua alma.
O espelho refletindo-a, as paredes protegendo-a de si mesma. O médico sempre lhe dissera. Mantenha o controle, não pense demais, mas pense o necessário para se controlar. Tranquilize-se. E desde então ela se tranquilizara. Resumira sua vida aos afazeres domésticos e a cuidar do marido e naquele dia, como em qualquer outro, ela o esperava. Só não imaginara aquelas bolhas coloridas a voar do lado de fora.
O lado de fora. Não, ela não poderia chegar até ele. O espelho já lhe mostrava em toda sua serena calma arduamente conquistada. Não perdera a beleza, ela ainda estava lá, e adornada pelo sublime brinco de pérola que ela quase que obscenamente dependurara de apenas uma das orelhas. A pérola enfim começou quase a sussurrar, ela ouvia um murmúrio, um barulho quase anestesiado. As forças passaram a se confundir, a estrutura sólida da pérola aos poucos ia contorcendo-se toda, amolecendo e alternando-se conforme os picos de luz. Mistura de terror e fascinação, atração e repulsa. A pérola aos poucos tocava levemente a superfície da bolha. Ávidas elas se enroscavam. A solidez da pérola desmanchava-se toda ao aproximar-se do frágil da bolha. Suas cores se fundiam, as espessuras se desintegravam, os círculos encaixaram-se perfeitamente, o grito era agora insuportável. Até que o barulho silencioso daquele espasmo pareceu atravessar a bolha desmanchando-a em pleno ar e a pérola escapou do furo da orelha e escorregou, sedutora, suada, em direção ao chão.
A mulher tombou. Recostou-se na superfície árida em busca da pérola, seus olhos perscrutaram a escuridão. Quem a visse divisaria um perfeito gato com olhos faiscantes e completos, portadores de uma completude mística e selvagem. Seus olhos roçavam o chão frio e, no entanto, queimavam de tão quentes. Tinham dentro de sua órbita circular e ardente todo o mistério do mundo. Não havia mais deslocamento no tempo ou no espaço. Tais como os olhos do gato, ali se poderiam ver as horas do mundo, as horas da vida, da morte, os desejos da carne, a vontade de pertencer. Eles ainda buscavam a pérola e ofereciam em troca a nostalgia molhada das lágrimas.
Um ponto brilhou no arfar da escuridão. Os dedos o tomaram. Era ela, inteira, perfeitamente polida, bela, sem qualquer mancha. De súbito, voltou a penetrar o furo da orelha. Ela não poderia mais perder nada. Mesmo assim, algo dela já não conseguia mais se levantar. Faltava-lhe força. Olhando para o chão ela podia ver, quase sentir, toda a forma do seu sofrimento. Tudo voltava. E os outros, o que os outros pensariam? O que ela tinha feito dela mesma? Tudo voltava.
Em esperas arrastadas e sonolentas eu às vezes decidia pensar em mim mesma. Em um movimento ingênuo e um pouco egoísta eu gostaria, não sei se desejava, despojar-me de toda uma certa beleza indefinida que sobrava a mim e estranhava-me diante do outro. Talvez por sentir no ar certo mal estar diante do belo, eu acabara por vestir-me de um mal estar diante de mim mesma. Gostaria de ser feia. Feia e selvagem. Arredia, cabelos desencontrados, olhares que eram simplesmente olhares. Estátuas frias e geladas. Gostaria de ser comum. Ansiara vivamente por ela. Ausência de desejo. Mas eu queria sim o diferente, o místico, o selvagem, a floresta que simplesmente não se avista do mar da cidade. Mas eu também queria o igual e não queria ceder às exigências da minha vaidade. Porque algo em mim ainda gostava…Mesmo querendo ser curta eu era longa, um infinito fio de pérolas profanas desamarradas.
Como eu queria não ter nada na cabeça. Ser como uma bolha de sabão. Inesperada e rápida. Normal e líquida. Ai como desejo aquela liquidez da bolha e como inesperadamente adquiri a solidez da pérola! As bolhas são mais ingênuas, as bolhas só esperam por algum sopro de vento e, depois, deixam-se levar por ele. As pérolas exigem muito mais. E, no entanto, eu as escolhi. As pérolas permanecem as mesmas com o passar do tempo, as bolhas não. Elas mudam, elas nascem e pouco tempo duram. Não há o tempo do sofrimento para as bolhas, sequer o do tédio porque as bolhas são livres e completas demais para isso. E o mais incrível, as bolhas são visíveis em sua inteireza, por dentro e por fora. As pérolas ocultam o interior empoeirado e fazem ver apenas a superfície pintada por um brilho opaco.
Meu olhar atravessou o chão frio, quase acompanhando a náusea de um movimento de dor, e só então pude ver erguerem-se do solo algumas leves bolhas de sabão. Minha filha as soprava, ela agora estava ali dentro, imersa na escuridão, e deitara o pequeno corpinho ao meu lado, no mesmo chão frio, para ver crescerem, de baixo pra cima, suas bolhas que salpicavam a harmonia daquela escura noite de minha alma.
Olhei-a e era como se olhasse a mim mesma com uma súbita e inesperada emoção e, com alívio, deixei de entender. Sobre mim, eu apenas assistia o belo bailar das bolhas que caíam, de cima para baixo, e estouravam bem rente ao meu corpo. Meus ouvidos agora distinguiam mil risos e mil vozes, notas, compassos, dissonâncias, modulações, versos, letras e canções, mas meu coração pulsava em silêncio esperando, agora leve e inteiro, pelo rompimento da última bolha que molharia, quem sabe, aquele meu seco brinco de pérola.
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