Miró, Constelação: a estrela da manhã
Sobre aquele chão amassado de frutas e folhas, meus pés brincavam, percorrendo todos os caminhos. As árvores largas, de altura generosa e folhas fartas deixavam a luz escorrer por entre seus espaços, entre vastos e estreitos. Os galhos desenhavam formas ideais para construir uma casa com todos aqueles restos de madeira velha. Éramos os seus construtores. Habitávamos lá no alto. De toda conhecida liberdade, provávamos um gosto à vontade, sem saber de nosso futuro, éramos tão presentes e nem sabíamos. Alguém corria para o pequeno portão cinza ao final do muro. Alguém ouvia os latidos vindos do outro lado. Alguém corria e os outros seguiam atrás. O quintal se lhe abria como uma caixa de surpresa, qualquer caixa de infância. Multiplicavam-se os esconderijos e os mitos. Não é tudo que recordo de tantos dias sob aquelas árvores cacheadas, pisando aquele chão fruteado. Havia também o velho galinheiro, outro projeto de casa, com cômodos e até pequenas toalhas. Certo dia apenas me esgueirei sozinha, por entre ramos e coisas silenciosas. Não sabia nada sobre os meus fantasmas e fazia dali minha casa. As árvores eram meu cobertor de fragmentos amontoados, as frutas que não comi minhas divindades mascaradas, os nomes e coisas que inventei, eram meus deuses e meus lugares. Naquele lugar onde derramei minha infância, a infância da qual às vezes não tenho saudade, mas que me chama de dentro da sua repetida memória. Lugar de acasos. Naquele cheiro onde reconhecia meu corpo, naquelas sombras onde eu podia ver, naqueles buracos onde eu tinha medo de entrar, naquele seco mar que guardava meu corpo, meus intermitentes calores, era naquele chão, que hoje nem existe mais, onde eu deitava as minhas primeiras ardências. Talvez lá outrora estivemos eu e você, mas já não me lembro. Certamente estivemos, já me lembro.
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