Vista de Arles com lírios, Van Gogh
Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
Ruy Belo
Os grãos de terra iam emoldurando aquelas formas. Aos poucos, cobriam as superfícies, disfarçando cores, suavizando as marcas deixadas pelo tempo. Entoando um preguiçoso movimento, eles tomavam conta de tudo, abraçavam aqueles objetos como se fossem raízes de uma nova planta, ou adubos para as promessas das sementes. A areia ia engolindo produtos humanos em uma espécie de ciclo em que o homem voltava às suas origens, ao berço de onde ele primeiro tivera nascido.
O menino era hábil em enterrar os objetos. Tudo que ele via pelo caminho ou avistava com os olhos curiosos e pueris da sua primeira infância, logo decidia por esconder da luz do sol, condenando a coisa às sombras da terra. Davam-lhe carrinhos que ele logo afundava. Davam-lhe bolas que ele logo imobilizava. Davam-lhe lápis e papel que logo confundiam-se com as cores da terra. Davam-lhe animais de plástico que ele sequer exitava em devolvê-los à liberdade de sua morada. Davam-lhe sorrisos que ele ignorava. Davam-lhe lágrimas que ele esquecia sem sequer ter um dia delas lembrado. Davam-lhe abraços que ele afastava.
Era um menino que não reagia a nada. Do mundo, ele apenas enterrava.
Morava em uma vila rural, perto da cidade, cercada por montanhas, de pouca chuva e muito sol. Marcava presença na paisagem bucólica do lugar muitas árvores e algumas flores. Árvores que abrigavam pássaros. Flores que escondiam perfumes e orvalhos colhidos na madrugada. Na vila, além do que se encontra em quase todo campo, havia muito vento. Ventava em todas as direções, em todos os momentos. De dia, de noite, em dia de sol, chuva, tempestade ou calmaria. Ventava por fora e por dentro. As pétalas das flores, o vento levava. Os perfumes da terra, o vento trazia. A saudade dos homens, o vento acumulava. As lembranças aliciantes, o vento estendia. Os cabelos das moças, o vento acariciava. Os olhares dos homens, o vento pervertia. As saias das lavadeiras, o vento respeitava. As das raparigas, o vento erguia e depois fugia. Os amores, o vento abraçava. As crianças, o vento punha uma pitada de alegria. Fazia voar as pipas, fazia agitar a correnteza do rio. Aos velhos, o vento adormecia. Aos jovens, o vento despertava. Aos vivos, o vento sussurrava. Aos mortos, o vento benzia.
Na Vila, o vento era parte da vida e da morte, certa e bendita! Gostava de se deixar definir pelas folhas. Apenas elas o mostravam, apenas elas o entediam. Quem tinha ouvidos para escutar, algumas palavras do diálogo entre os dois entendia. Eles falavam do que não pode ser dito, do que não pode ser visto, do que está além do vivido. Eles espiavam a vida e adivinhavam a sorte. Vento e folha, apaixonados, feito menino e moça em um eterna epifania.
Certo dia, o vento uma mulher levou. Ela andava entre rosas e risos. Chegava do campo de lírios. Belo e fazedor da fama da vila. Na cidade próxima, todos conheciam o campo. Pintores vinham deitar em suas sombras em busca de paisagens para seus quadros. Compositores vinham ouvir o som das pétalas, sentir o cheiro da vida para depois poder traduzi-los em melodia. Poetas vinham em busca do segredo que brotava de cada um dos lírios e era levado no bico dos pássaros pra longe, sempre em forma de segredo e alívio.
A mulher amava os lírios. Chamava-se Dora, era tímida e pequenina. Quase não falava, dela pouco ou nada se sabia. Os pais morreram jovens. Cresceu praticamente sozinha. Da família, tinha apenas uma tia já velha, solteirona e emburrada do mundo. Cética e cinza. Muitos viam Dora, de vez em quando, a rabiscar coisas em pedaços de papel sempre pequenos e envelhecidos. Achavam que ela era mais uma daquelas moças metidas à poeta que, quando iam aos bailes na cidade, voltavam cheias de sonhos e ilusões, logo despejadas em letras trêmulas e sonhadoras na forma de rimas livres e apressadas. Julgavam-nas preguiçosas e levianas, do tipo fácil, que qualquer um engana sem precisar de grande esforço.
Dora, no entanto, era tida como misteriosa, cheia de signos que não poderiam ser decifrados por alma pequena e vil. Todos viam que escrevia, mas ninguém sabia onde ela guardava os papéis pequenos e envelhecidos. Um mistério que não chega a ser um mistério daqueles completamente envoltos por mistérios. Dora era apenas o símbolo de algo que dançava entre tensões opostas e revelava aquilo que não pode ser dito, aquilo que escolhe o não sensível em todas as suas derretidas formas próximas ao sobrenatural.
Fato é que para olhos que fitam e são fitados, a vila era pequena. A curiosidade saltava aos olhos. A vida de cada um era servida no café da tarde e provada em comentários doces ou salgados. Depois que os pais morreram, ela que já era notada ficou ainda mais destacada. Começou a trabalhar como costureira na cidade para se sustentar já que com a tia ela praticamente não podia contar. As casas de costura eram bastante populares nas cidades do começo dos anos 20, época em que se dá esse ocaso do destino, e atraíam as moças do campo. Nelas, os fregueses eram constantes, sempre de terno e gravata. Os melhores tipos da cidade, sempre com botões a pregar e meias a costurar. Incrível para tipos tão bem acabados, faltas assim tão banais! Enfim, coisas de novos tempos de modernidade! Dora pregava botões, costurava meias, camisas, calças e recebia por isso, pouco, mas recebia!
Não demorou para que um dos moços sem botão na camisa pregasse em Dora a peça mais antiga da história. Dora ficou apaixonada. Engravidou. Perdeu o emprego. Nunca mais na cidade pisou a preço de ser avacalhada com injúrias mil e entendimento nada. Escrevia. Escondia. Nunca foi tão falada em toda sua vida. Nesse tempo, ia sustentada pela tia que, pela criança que ela guardava, decidiu fazer uso da caridade, tão boa amiga. Ofereceu sua casa à Dora e lhe situou em um tempo de descanso até que a criança nascesse.
Em dia de pouco vento e noite clara, Dora deu à luz a um menino. Como teto na noite do parto, teve apenas a proteção da lua. Como apoio para o corpo, as folhas que protegiam o chão. Ouviu o primeiro choro do filho misturado ao som do leve vento que agitava brandamente os lírios naquele dia. Dora viu nascer seu filho no meio do campo de lírio, limpou-o com as pétalas brancas e amarelas, secou-o com o vento que fazia dançar as almas. Depositou nele uma lágrima e decidiu viver por aquela nova vida.
(mais…)
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