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Posts Tagged ‘Van Gogh’

Van Gogh, Sower with Setting Sun, 1888

Van Gogh, Sower with Setting Sun, 1888

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80

Eu nunca o tinha visto pelas ruas. E ele me surgiu, de repente, no inacreditável da visão que vê, mas não percebe a si mesma. Por isso, no começo, era como se eu nem visse. Primeiro, vi algo que se parecia com uma bicicleta. Tinha as rodas uma de cada lado, os canos no centro, o guidão à frente, as correntes, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada disso. As rodas da bicicleta também eram rodas de uma moto, com pneus grossos e outros adornos. O guidão era tão cheio de coisas penduradas por toda parte que mais parecia o comando de uma nave espacial indo direto dali para outro lugar. Uma espécie de ferramenta foi acoplada ao guidão para fazer as vezes de câmbio de troca de marcha. E os penduricalhos se espalhavam por todos os lados. Na parte de trás, uma caixa dessas de plástico dava vida a um depósito de muitas coisas que naquele momento eu ainda não podia saber o que eram. Meus olhos viam um formidável produto de engenharia que eu não conseguia classificar, nem distinguir, nem esquecer. Biciclomoto talvez. Seu hábil condutor era conhecido como 80. Isso mesmo. Seu nome era um número, ou seu número era um nome, como queiram. Ninguém nunca soube me explicar porque ele se chamava assim. 80 era tido como louco das ideias. Varrido, do tipo que ninguém dá muita atenção. Dele só se sabia que andava pelas ruas da cidade noite e dia, dia e noite. Conduzindo a sua biciclomoto, falando coisas que ninguém entendia, que ninguém ouvia, trombando nas esquinas, batendo nos muros, desafiando as sarjetas e todas as leis físicas do deslocamento. Nesse dia vi 80 enquanto estava parada no semáforo. Era meio-dia. Vi um homem vindo rápido em cima de algo como uma bicicleta. O sol ia alto e a luz se intercalava com os vãos deixados pela sua imagem. Só me chegava um vulto. Ele parou quando à sua frente se colocou o muro de uma casa vizinha. Olhou para os lados como quem não olha. Deu marcha ré, fez com os lábios o barulho do acelerador da moto, pude ouvir e ver o fazer-se do movimento. Arrumou alguns penduricalhos, conferiu o motor, o estado das rodas. Brigou com a calçada, tropeçou na sarjeta, insistiu com o espaço e, num instante fugitivo, caiu de um só tombo no chão. A biciclomoto também tombou perfeitamente encaixada no seu corpo e rolaram pela rua abaixo milhares de laranjas e limões que ele deveria ter recolhido das árvores que visitaram o seu caminho naquele dia. Tudo que ele tinha recolhido agora ia embora descendo aquela rua. 80 estava imóvel. Completamente. Parecia morto, mas poderia ser uma encenação, uma encenação de morte, afinal, não diziam que ele era louco. O semáforo abriu. O carro andou. 80 ficou para atrás. Os carros atrás do meu seguiram. Os que vinham também. Ninguém parou. Ninguém o viu deitado, entre a biciclomoto, iluminado pelo sol. Fiquei sabendo, nem me lembro mais como, que ele se levantara um tempo depois. Me disseram que era comum. Que ele sempre se jogava e se levantava depois. Ah! É louco! Me disseram que ele já estava de pé, arrumando a sua moto, vendo se nada estava fora do lugar, e recolhendo, uma a uma, todas as laranjas e os limões que haviam rolado rua abaixo.

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Céu de Van Gogh

As paredes protegem o homem,
enquanto o condenam à sua solidão.
Os campos perseguem a paz
enquanto confundem os olhos de vastidão.
Os bancos recebem o corpo,
enquanto deitam a alma em contemplação.

Foi assim que me deitei naquela hora,
esticando as costas e levantando o olhar.
Encontrei de súbito um espelho de árvores
salpicadas de luz e formas doces entrecortadas.
Nada mais ouvi do que falavam ao meu lado,
nada mais senti que não fosse o suspirar
do meu cansaço e das minhas imensidões.
Nada mais me interessava do que se passava ao redor,
nem se eu seria outra ou aquela ali mesma
em questão. Apenas entreguei meus
pensamentos ao eterno instante do não.
E por que nem pensava em possíveis
exteriores sentidos pra isso ou aquilo,
aquilo me preencheu como vinho em noite
sem som. E como eu sabia que tudo
era de certa forma inútil, eu tomava
meu prazer em ser também inútil.
Sem serventia, eu e o uniVERSO,
que nem sequer sabe ou suspeita de mim,
de tudo que senti. Mas ambos éramos comunhão.

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Van Gogh

Poesia

Não há quem não diga do tempo
coisas raras e às vezes ocas por dentro,
que fazem o corpo pensar e a mente
entristecer a sombrear tanto lamento.

Dentro ele só tende a passar, com ele
dores, mágoas, descontentamento.
Em pouco ele há de demorar, quem sabe
alegria, flor, casamento.

Enquanto um vai, outro fica a esperar,
em despedida faz voar o lenço,
esconde as lágrimas por trás do aceno,
e gasta os olhos na imensidão do mar.

Receita incontida, saborosa, aflita,
cultivando a sabedoria daquele que fica,
nostálgico de si e do que já deu partida,
de teu segredo talvez saia só,

ferida.

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ARCONCHEIRO

Poesia

Van Gogh

Sossego
Ar com cheiro
De morango
Ando vendo tanto
Aconchego
Demorando…

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Van Gogh

De onde vem o cansaço? Ele vem? Será de tanto olhar o repetido cair das folhas de árvores altas e longas. Será de sentir o mundo, seus sons, suas voltas, sua pressa. Será de muito pensar nas possibilidades de um futuro jamais conhecidas e, no entanto, atrevidas em visitar-nos? Pode ser por lamentar imaginando delirantemente um passado que já não é tampouco será, posto que simplesmente não está? Será de pensar em letras, formas, concepções, filosofias e indagações? De formular textos do instante, da obrigação da hora, da resignação? O que te faz desmanchando em pleno amanhecer desencontrando? Será pelos desejos, meus e dos outros? Aonde começa o sopro, aonde termina o viço que cede lugar a olhos opacos, a uma sensação fastidiosa de falta de espaço? Virá do nada, do fastio do mundo, da transitoriedade da vida? O cansaço pode vir da simples passividade do fazer nada ou da simples imensidão do desejar tudo. Pode vir e não vir ao mesmo tempo trazendo alegria insanas, tristezas sem solidão ou drama. Alguém diante de mim anda cansada, inclusive por causa desse texto que só pergunta e responde pouco ou nada. Ao menos agora ele vai dizer que esse excesso de perguntas cansa, mas move. Moveu essas letras ao menos, assim como o fez as amarelas borboletas que por aí ainda voam, emprestando do mundo todo tempo!

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Vista de Arles com lírios, Van Gogh

Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento

Ruy Belo

Os grãos de terra iam emoldurando aquelas formas. Aos poucos, cobriam as superfícies, disfarçando cores, suavizando as marcas deixadas pelo tempo. Entoando um preguiçoso movimento, eles tomavam conta de tudo, abraçavam aqueles objetos como se fossem raízes de uma nova planta, ou adubos para as promessas das sementes. A areia ia engolindo produtos humanos em uma espécie de ciclo em que o homem voltava às suas origens, ao berço de onde ele primeiro tivera nascido.

O menino era hábil em enterrar os objetos. Tudo que ele via pelo caminho ou avistava com os olhos curiosos e pueris da sua primeira infância, logo decidia por esconder da luz do sol, condenando a coisa às sombras da terra. Davam-lhe carrinhos que ele logo afundava. Davam-lhe bolas que ele logo imobilizava. Davam-lhe lápis e papel que logo confundiam-se com as cores da terra. Davam-lhe animais de plástico que ele sequer exitava em devolvê-los à liberdade de sua morada. Davam-lhe sorrisos que ele ignorava. Davam-lhe lágrimas que ele esquecia sem sequer ter um dia delas lembrado. Davam-lhe abraços que ele afastava.
Era um menino que não reagia a nada. Do mundo, ele apenas enterrava.

Morava em uma vila rural, perto da cidade, cercada por montanhas, de pouca chuva e muito sol. Marcava presença na paisagem bucólica do lugar muitas árvores e algumas flores. Árvores que abrigavam pássaros. Flores que escondiam perfumes e orvalhos colhidos na madrugada. Na vila, além do que se encontra em quase todo campo, havia muito vento. Ventava em todas as direções, em todos os momentos. De dia, de noite, em dia de sol, chuva, tempestade ou calmaria. Ventava por fora e por dentro. As pétalas das flores, o vento levava. Os perfumes da terra, o vento trazia. A saudade dos homens, o vento acumulava. As lembranças aliciantes, o vento estendia. Os cabelos das moças, o vento acariciava. Os olhares dos homens, o vento pervertia. As saias das lavadeiras, o vento respeitava. As das raparigas, o vento erguia e depois fugia. Os amores, o vento abraçava. As crianças, o vento punha uma pitada de alegria. Fazia voar as pipas, fazia agitar a correnteza do rio. Aos velhos, o vento adormecia. Aos jovens, o vento despertava. Aos vivos, o vento sussurrava. Aos mortos, o vento benzia.

Na Vila, o vento era parte da vida e da morte, certa e bendita! Gostava de se deixar definir pelas folhas. Apenas elas o mostravam, apenas elas o entediam. Quem tinha ouvidos para escutar, algumas palavras do diálogo entre os dois entendia. Eles falavam do que não pode ser dito, do que não pode ser visto, do que está além do vivido. Eles espiavam a vida e adivinhavam a sorte. Vento e folha, apaixonados, feito menino e moça em um eterna epifania.

Certo dia, o vento uma mulher levou. Ela andava entre rosas e risos. Chegava do campo de lírios. Belo e fazedor da fama da vila. Na cidade próxima, todos conheciam o campo. Pintores vinham deitar em suas sombras em busca de paisagens para seus quadros. Compositores vinham ouvir o som das pétalas, sentir o cheiro da vida para depois poder traduzi-los em melodia. Poetas vinham em busca do segredo que brotava de cada um dos lírios e era levado no bico dos pássaros pra longe, sempre em forma de segredo e alívio.

A mulher amava os lírios. Chamava-se Dora, era tímida e pequenina. Quase não falava, dela pouco ou nada se sabia. Os pais morreram jovens. Cresceu praticamente sozinha. Da família, tinha apenas uma tia já velha, solteirona e emburrada do mundo. Cética e cinza. Muitos viam Dora, de vez em quando, a rabiscar coisas em pedaços de papel sempre pequenos e envelhecidos. Achavam que ela era mais uma daquelas moças metidas à poeta que, quando iam aos bailes na cidade, voltavam cheias de sonhos e ilusões, logo despejadas em letras trêmulas e sonhadoras na forma de rimas livres e apressadas. Julgavam-nas preguiçosas e levianas, do tipo fácil, que qualquer um engana sem precisar de grande esforço.

Dora, no entanto, era tida como misteriosa, cheia de signos que não poderiam ser decifrados por alma pequena e vil. Todos viam que escrevia, mas ninguém sabia onde ela guardava os papéis pequenos e envelhecidos. Um mistério que não chega a ser um mistério daqueles completamente envoltos por mistérios. Dora era apenas o símbolo de algo que dançava entre tensões opostas e revelava aquilo que não pode ser dito, aquilo que escolhe o não sensível em todas as suas derretidas formas próximas ao sobrenatural.

Fato é que para olhos que fitam e são fitados, a vila era pequena. A curiosidade saltava aos olhos. A vida de cada um era servida no café da tarde e provada em comentários doces ou salgados. Depois que os pais morreram, ela que já era notada ficou ainda mais destacada. Começou a trabalhar como costureira na cidade para se sustentar já que com a tia ela praticamente não podia contar. As casas de costura eram bastante populares nas cidades do começo dos anos 20, época em que se dá esse ocaso do destino, e atraíam as moças do campo. Nelas, os fregueses eram constantes, sempre de terno e gravata. Os melhores tipos da cidade, sempre com botões a pregar e meias a costurar. Incrível para tipos tão bem acabados, faltas assim tão banais! Enfim, coisas de novos tempos de modernidade! Dora pregava botões, costurava meias, camisas, calças e recebia por isso, pouco, mas recebia!

Não demorou para que um dos moços sem botão na camisa pregasse em Dora a peça mais antiga da história. Dora ficou apaixonada. Engravidou. Perdeu o emprego. Nunca mais na cidade pisou a preço de ser avacalhada com injúrias mil e entendimento nada. Escrevia. Escondia. Nunca foi tão falada em toda sua vida. Nesse tempo, ia sustentada pela tia que, pela criança que ela guardava, decidiu fazer uso da caridade, tão boa amiga. Ofereceu sua casa à Dora e lhe situou em um tempo de descanso até que a criança nascesse.

Em dia de pouco vento e noite clara, Dora deu à luz a um menino. Como teto na noite do parto, teve apenas a proteção da lua. Como apoio para o corpo, as folhas que protegiam o chão. Ouviu o primeiro choro do filho misturado ao som do leve vento que agitava brandamente os lírios naquele dia. Dora viu nascer seu filho no meio do campo de lírio, limpou-o com as pétalas brancas e amarelas, secou-o com o vento que fazia dançar as almas. Depositou nele uma lágrima e decidiu viver por aquela nova vida.

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